São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Muy amigos

MARCELO LEITE

Com um amigo desses, deve ter pensado Fernando Henrique Cardoso, ninguém precisa de inimigos. As declarações desajeitadas do ministro das Comunicações Sérgio Motta sobre o governo puseram fogo na semana, deslocaram o foco da crise política do Congresso para a Esplanada dos Ministérios e ainda turvaram o sucesso coreografado da viagem presidencial aos Estados Unidos.
Bem que Motta tentou pôr a culpa nos deputados e na imprensa, mas não colou. É a velha desculpa do político boquirroto, de que suas declarações foram tiradas do contexto. O ministro das Comunicações, na realidade, falhou na mais trivial função comunicativa: vigiar as próprias palavras.
Supostamente, ele estaria fazendo uma avaliação positiva do governo a deputados peemedebistas (aquele partido que, mesmo participando da gelatinosa base parlamentar do governo, mais problemas lhe tem causado no Congresso). Horas depois, espraiava-se pelo país a versão de que ele descera a lenha nos colegas e até na primeira-dama.
Nem toda a má-fé do mundo, reunida, poderia engendrar um complô tão eficaz e instantâneo.
Deixe-se de lado por ora o tal contexto, para concentrar a atenção sobre a frase célebre da "masturbação sociológica. Em qualquer contexto que tenha sido pronunciada, sempre soaria ofensiva para um presidente que milita nessa confraria acadêmica, assim como sua mulher. Sob qualquer ângulo, revela uma incrível inabilidade verbal no homem apontado como eminência parda da era FHC.
Tive em mãos a transcrição de dez páginas do diálogo entre o ministro e a bancada peemedebista, distribuída por esta. O texto não abarca toda a sessão. Começa com uma intervenção do deputado Edinho Ebes e termina com seu colega Marcelo Barbieri dando a palavra a Alberto Goldman.
A masturbação: sem dúvida Motta referia-se ao projeto Comunidade Solidária, comandado pela primeira-dama Ruth Cardoso. Por outro lado, ele pronunciou as palavras fatídicas só muitos minutos depois de anunciar que um grande programa de atendimento emergencial seria anunciado "a partir deste mês. Nesta altura, o ministro só registrou, sem comentar, o fato de o programa não ter começado por medidas concretas, mas pelo levantamento de mais de 1.400 comunidades carentes.
Mais à frente, esse levantamento foi comentado pelo deputado José Aristodemo Pinotti: "Eu não acho que identificar mil quatrocentos e tantos bolsões de pobreza resolva qualquer coisa neste país. Foi na resposta a Pinotti, depois de manifestar "preocupação com o Comunidade Solidária, que Motta escorregou:
"Então, esta, desculpe a palavra, masturbação sociológica que fica, me irrita, porque não chega a nenhuma... a um resultado. O senhor sabe disso, o senhor foi secretário, que é vontade política. Querendo fazer, faz.
A bem da verdade, não se referia a todo o programa, mas a seu início. Mas não vejo como essa contextualização poderia diminuir a indelicadeza e a impropriedade das palavras, de qualquer modo.
De resto, Motta efetivamente fez uma avaliação favorável do governo. Contei pelo menos nove passagens desse gênero, entre outras: "um desempenho administrativo extremamente adequado; "um esforço brutal para implantar uma nova forma de governar; "cesta básica abaixo do salário mínimo; "inflação baixíssima.
Ocorre que se tratava de uma reunião com peemedebistas, na qual estes certamente não estavam a passeio. Ou seja, a pretexto de apresentar críticas, queriam era aumentar o próprio cacife. Motta, com excesso de franqueza, ia aquiescendo a algumas críticas e acrescentando outras tantas por conta própria.
Toda essa discussão sobre contexto, no entanto, tornou-se ociosa depois que FHC mandou seu recado desde Nova York, pelo porta-voz Sérgio Amaral: "Não cabe a ministros emitir juízos de valor sobre outros ministros.
Até para o amigo e sócio Fernando, Serjão andou falando demais.
Ciranda, cirandinha
Outro que falou demais, desta vez de caso pensado, foi o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Carlos Eduardo Moreira Ferreira. Diferentemente da incontinência verbal de Sérgio Motta, a do líder empresarial ganhou até manchete da Folha.
Foi na terça-feira: "Fiesp aponta 'ciranda do calote', alarmava-se o titulão da primeira página. O "calote era uma expressão mais branda para a sonegação.
O máximo de precisão que o atual presidente da Fiesp foi capaz de oferecer sobre sua alarmante revelação foi que "grande parte das empresas estaria adiando (outro eufemismo) o pagamento ao qual estão obrigadas por lei.
Em outras palavras, Moreira Ferreira lançou sua ameaça sem uma pesquisa sequer a apoiá-la. Até aí, nada a estranhar. Cada um faz lobby como sabe ou como pode (a Fiesp queria mesmo era perdão de multas por atraso no ICMS).
Espantoso é que o jornal tenha aceitado o papel de veículo daquilo que muitos leitores terão entendido como uma chantagem. Mais ainda, que lhe tenha conferido a condição de manchete, sem ao menos verificar junto ao Fisco (estadual e federal) se a alegação tinha alguma procedência.
A secretária de Redação Eleonora de Lucena, responsável pela área de edição, argumenta que o jornal precisa também refletir o que ocorre na sociedade, não só o que dizem integrantes do governo. Reconhece a fragilidade factual da informação, mas acrescenta: "Era o presidente da Fiesp que estava falando.
Do ponto de vista da esfera pública, não importa. Podia ser até o papa. A informação precisa sustentar-se em fatos e argumentos, fazer sentido. Afinal, não terá sido a primeira vez que um presidente da Fiesp mete os pés pelas mãos.
No dia seguinte, veio o troco. Todos ficaram contra Moreira Ferreira, do secretário da Fazenda do Estado de São Paulo aos editorialistas da Folha. Estes o criticaram na peça "Palpite infeliz, da qual cito o último parágrafo:
"O atual patamar de juros é realmente escorchante. A presente estrutura tributária é irracional. Mas o caminho para corrigir tais situações não é pedir privilégios para os que não pagaram seus impostos.
Só cabe acrescentar, a esse argumento cristalino, óbvio, é que poderia ter sido cogitado antes de o jornal formular a manchete.

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