São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Confronto entre poesia e ensaio ajuda a entender Enzensberger

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hans Magnus Enzensberger seguiu pelo menos duas carreiras paralelas: a de ensaísta e a de poeta. Elas não apenas se justapõem como também se complementam, ou melhor, se entrelaçam. Nos ensaios ou nos poemas pode-se observar o que ele pensa, mas é de seu confronto que ressalta como ele pensa. Isso não é secundário, pois estamos diante de uma trajetória intelectual exemplar da segunda metade deste século.
Quem quer que leia seus ensaios antigos, dos anos 60, digamos, constatará que ele era um escritor inequivocamente de esquerda, profundamente imbuído das categorias marxistas. Mas não achará neles nada do que é mais frequentemente praticado por quase toda a crítica marxista, em particular a literária: a denúncia alcagueta e ameaçadora dos inimigos da classe ou do partido.
O autor seria então um renegado, um ex-marxista arrependido? Não é bem assim. Pois, em primeiro lugar, ele não era um esquerdista convencional. Trinta anos atrás, Enzensberger já usava o jargão mais como um trampolim do que como uma camisa-de-força. Daí o fato de que em seus ensaios antigos, vazados numa linguagem que parece tão obsoleta quanto a da escolástica medieval, manifestam-se, ainda assim, idéias e observações dignas de nota. Ele é uma dessas raras pessoas que, para usar a velha equação, superou o esquerdismo marxista incorporando-o. Ele pode se dar ao luxo de abordar as esquerdas, nova e velha, com a condescendência com que neste país se trata, digamos, a Academia Brasileira de Letras.
Sua prosa ganha, porém, quando lida em conjunto, principalmente se cada texto for acompanhado da respectiva data de composição. Pois ela ilustra um pensamento de exceção segundo o qual -ao contrário daquilo a que nos habituamos- se a realidade não corresponde à teoria, tanto pior para a teoria. Isso explica também por que, marxista ou não, Enzensberger sempre deu preferência a abordar não abstrações, mas questões concretas, atuais.
Mais do que dos teóricos, ele se aproxima do homem-de-letras tradicional e, particularmente, da categoria minoritária de poetas que aplicaram sua perícia ao estudo da política e da sociedade: o polonês Czeslaw Milosz, o mexicano Octavio Paz etc. Nenhum desses o fez apenas por capricho, mas devido a uma necessidade profunda, decorrente tanto da urgência dos problemas quanto da superficialidade dos outros analistas.
Para tanto, o fato de serem poetas foi sempre central. É curioso como, num século como o nosso, quando poesia e política se envolveram mais intimamente do que antes, alguns poetas -tradicionalmente considerados seres etéreos e alienados- compreenderam a política melhor do que qualquer político entendeu a poesia. Talvez porque a mente política mediana é necessariamente dogmática, enquanto a poética é, numa acepção muito material, eminentemente prática. Fazer poesia consiste antes de mais nada em resolver problemas verbais e expressivos com os recursos à mão. Poemas podem até falar em utopias, mas não são utópicos: eles existem.
Muito do que se pode dizer da poesia de Enzensberger se aplica à sua prosa e vice-versa. Seu poema longo ou ciclo poético "O Naufrágio do Titanic" é polifônico. Seus ensaios também buscam examinar os diversos aspectos de uma questão. Sua poesia é clara como seus ensaios. Seus ensaios lançam mão, como sua poesia, de inúmeros recursos literários. Mas se naqueles há uma clara evolução durante a qual eles se livram de seu apego inicial a concepções mais ou menos apriorísticas e fechadas, nesta há apenas transformação, uma transformação que não teme reconsiderar amiúde seus pressupostos para reformulá-los.
É a poesia, contudo, que está no centro de sua obra, pois esta consiste em operar com variantes e variações potencialmente infinitas, o que, no ensaísmo, equivale a aceitar as hipóteses enquanto tais e trabalhar com elas. Seus ensaios são poéticos num sentido profundo, o da metodologia; e seus poemas são antipoéticos tanto na rejeição de uma linguagem artificialmente distante ou elevada, quanto no exercício de um prosaísmo que, conscientemente perseguido, torna difícil extrair de qualquer texto seu um verso citável como "belo". Enzensberger raramente deixa de lado uma desconfiança que, na poesia, o afasta da convencionalidade poética e, na ensaística, torna-o imune ao esquematismo dogmático.

Texto Anterior: O ocaso da guerra entre poder e espírito
Próximo Texto: Retrato pessimista da violência
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.