São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O ocaso da guerra entre poder e espírito

HANS MAGNUS ENZENSBERGER

Será que as coisas realmente precisam ser assim? Os intelectuais e os políticos, ou, como se costumava dizer em outros tempos, o espírito e o poder: reconheço ser este um assunto capaz de desanimar até os mais tolerantes, uma especialidade alemã tão insossa quanto o chucrute ou o carnaval em Mogúncia (Mainz). O único aspecto bom nessa controvérsia é o seu envelhecimento gradativo, a perspectiva de ela ser descrita no tempo passado e a oportunidade de se lhe dedicar um posfácio modesto e provisório.
Em todos os lugares onde se fala o alemão, políticos e intelectuais -como todos sabem- sempre se comportaram como tribos indígenas inimigas. A pergunta quanto ao motivo por que isso ocorre assim e não de outra maneira talvez pudesse ser respondida de modo exaustivo; mas seria preciso garantir a vida de uma quantidade ainda maior de intelectuais, criando-se cargos e cadeiras, requerendo-se verbas de sete algarismos para um conselho de pesquisas -e eu duvido que tais gastos pudessem ser justificados (...).
Poder-se-ia argumentar que a causa mais básica e comum é o fato de que uma sociedade alemã -no sentido de uma interação óbvia- provavelmente jamais existiu. Essa circunstância peculiar não pode ser explicada exclusivamente por determinadas relações de classes; ela expressa, acima de tudo, uma profunda necessidade de uma confortável segregação.
Nesse país, os consultores fiscais organizam os seus próprios bailes exclusivos para consultores fiscais, nos quais dentistas e professores de francês nada têm a procurar, e a interação normal dos membros do Sindicato dos Professores está limitada aos membros do Sindicato dos Professores (...).
A essa situação estrutural virtualmente inalterável juntam-se causas mais tangíveis, remontando aos tempos do feudalismo e, no nosso caso, como se sabe, isso assumiu uma forma especialmente tacanha e mesquinha. De um modo geral, os intelectuais alemães sempre vivenciaram o poder político como opressão e o poder político considerava qualquer manifestação intelectual independente como sendo uma ousada impertinência (...).
Eu ainda me lembro de como Gnter Grass tentou usar seus conhecimentos para ajudar um governo democrata-social. Ele estava disposto a mudar de lado e a abandonar seus textos durante alguns anos. Tudo em vão, ele era e continuou sendo suspeito. O que os seus colegas teriam dito, caso ele realmente tivesse se transferido para Bonn, é inimaginável.
Há duzentos anos, nada prejudicou Goethe mais do que o fato de ele ter se tornando ministro -nos dias de hoje diríamos conselheiro municipal- em Weimar.
Por outro lado, a situação reinante no exterior! Uma legendária miscigenação das duas esferas, por exemplo, na América Latina. Na capital brasileira, é praticamente impossível entrar num ministério sem tropeçar em algum intelectual. Nessa região do mundo, não apenas escritores, mas até poetas são nomeados embaixadores, e no Peru um romancista está abertamente ameaçando sua candidatura à presidência (Mario Vargas Llosa).
Não existe qualquer necessidade de se falar sobre a França. Lá reina uma inacreditável confusão desde os idos do século 18. Antes da Segunda Guerra Mundial, autores como Valéry, Giraudoux e Saint-John Perse ocupavam algum tipo de cargo no Quai d'Orsay e na Rue de Solferino. Até de Gaulle teria afirmado, quando Jean-Paul Sartre estava se recusando a obedecer instruções policiais, que não se prende um Voltaire (...).
Não, os políticos certamente não apresentam motivos de inveja. Quando observo os destinos deles, até tenho uma tendência a sentir pena deles. Além de todas as coisas desagradáveis, também existe a garantia de uma certa ingratidão por parte da posteridade (...).
Enquanto estava vivo, por exemplo, o duque de Wrttemberg possivelmente se encontrava numa posição melhor do que aquele obscuro cadete nascido em Marbach e que ele perseguia ocasionalmente (Schiller). A diferença é que atualmente um punhado de historiadores, no máximo, sabe qual era o nome exato de batismo desse duque. Os adversários de um certo judeu de Dsseldorf atualmente aparecem apenas nos comentários de rodapé dos seus textos, que podem ser encontrados nas livrarias de qualquer estação ferroviária (Heine).
(...) "Poder e Intelecto" -no retrospecto os dois me parecem ser um casal aposentado que passou o tempo todo do qual as pessoas conseguem se lembrar brigando e para os quais as discussões se tornaram um costume agradável e acalentado. Se observarmos tais casais de forma mais detalhada, percebemos que, com o passar dos anos, os dois se tornaram cada vez mais parecidos; todos os demais percebem isso, apenas eles mesmos de nada suspeitam. Talvez a situação seja exatamente a mesma entre os políticos e os intelectuais alemães que se atêm à familiaridade de sua antiga disputa (...).
Em primeiro lugar, a mais grosseira dessas correspondências; ela é tão simples e direta que pode ser facilmente esquecida. Políticos e intelectuais sempre esperaram que a sociedade, e isso significa todos os demais, os alimentasse, uma obrigação de prioridade que nem sempre foi óbvia para todos os interessados. Os membros daquelas classes que costumavam ser chamadas de trabalhadoras, em todos os tempos sempre tenderam a considerar ambos como parasitas (...).
Outras características comuns têm mais a ver com a formação interna das duas categorias. Em primeiro lugar existe o narcisismo, que é uma condição profissional. O desejo de se exibir faz parte da disposição deles; tanto políticos quanto intelectuais estão sempre inclinados a uma forma suave de culto de personalidade. Em termos de mídia, isso leva a um desejo compulsivo de reconhecimento, o que geralmente dá lugar a uma neurose de imagem.
E assim a competição, que na "economia livre" é uma necessidade opressiva e objetiva, se transforma numa profunda necessidade psicológica. A afirmação de que não existe canibalismo entre indivíduos da mesma espécie pode ser verdadeira em relação aos atacadistas de materiais elétricos. Até mesmo em acordos de cartéis existem resquícios de uma degradada fraternidade. Tais níveis mínimos de solidariedade dificilmente podem ser reconhecidos entre políticos e intelectuais. O fato de eles serem anti-sociais, por assim dizer, faz parte do seu caráter social (...).
Isso basta quanto à imagem fantasma dos dois clãs que o bom senso traçou e com a qual, para melhor ou pior, ambos precisam conviver. Quem conseguir gostar disso precisa apenas ligar o televisor: vendo as personalidades que habitualmente aparecem diante das câmaras, essa pessoa concluirá que nada se modificou. Mas isso seria um equívoco. Pois como se explica que estas figuras pareçam cada vez mais preocupadas e menos vivas e por que são apenas os mais tolos que continuam conseguindo falar com a devida empostação da convicção? Isso sugere que a totalidade do espetáculo está apenas vivendo dos seus bens históricos (...).
Os últimos príncipes do intelecto morreram há bastante tempo. É difícil encontrar pensadores que estejam apontando os caminhos a serem seguidos nos departamentos apropriados das novas universidades. Os proprietários de galerias decidem o que é arte e os grandes projetos para o futuro são fornecidos por comissões de programas, são fotocopiados e depositados no arquivo dos partidos (...).
Tanto para os políticos quanto para os intelectuais, isso significa que eles precisam se conformar com a perda de suas posições centrais. Uma tal renúncia é difícil. É muito raro que lugares privilegiados sejam abandonados com satisfação. Por isso, todos, nos dois clãs, estão tentando salvar o que pode ser salvo, nem que seja apenas a aparência externa (...).
Por esse motivo, nos últimos anos, as políticas culturais, de mídia e de entretenimento, outrora palcos relativamente remotos e subsidiários de operações, passaram a ocupar uma posição cada vez mais importante para políticos e intelectuais. Tem-se até a impressão de que velhos adversários estejam descobrindo uma nova comunhão de interesses, algo que o bom senso, na sua ingenuidade, jamais poderia ter sequer sonhado (...).
No nosso caso, o "conceito ampliado de cultura" surgiu no momento exato. Museus e feiras de móveis, casas de ópera e mercados de pulgas, festivais punk e simpósios, shows eróticos e campeonatos de futebol, jogos de computadores e feiras de turismo, cursos de culinária e orquestras sinfônicas -tudo pode ser consumido sem o menor problema nos termos desse conceito. Na verdade, da "cultura empresarial" das grandes firmas aos quiosques que vendem cachorros-quentes, nada realmente existe que esse abrangente conceito exclua.
E assim, sob o lema da "sociedade cultural", surgem muitas novas possibilidades de alianças. A unidade faz a força ou, como dizem os ingleses, o infortúnio junta estranhos companheiros de cama.
(...) Afinal de contas, nesse novo terreno poderão se desenvolver talentos totalmente diferentes dos daqueles poetas e pensadores, dos críticos e dos preceptores. Quanto mais desagradáveis os ambientes, tanto mais urgentemente necessitamos de artistas ambientalistas e de magos do vídeo, de especialistas em shows e de vitrinistas, de declamadores e de assessores de significado. Um estoque inesgotável de artes nos atrai aqui, todas muito rentáveis. O dinheiro parece estar disponível em quantidades mais que suficientes e, se alguma coisa tiver de ser cortada, as primeiras a desaparecer serão as instituições modestas e antiquadas, como bibliotecas, e não projetos em larga escala e superespetáculos capazes de garantir prestígio e hotéis lotados. O dinheiro para as coisas supérfluas sempre está disponível em abundância, como bem mostra a política agrícola da Comunidade Européia.
Eu acalento a esperança de que esse programa não irá agradar aos gostos de todos. Mesmo se a tentativa de saltar sobre a própria sombra puder ser merecedora de elogios, sempre haverá pessoas que se irão ater com obstinação às suas próprias obsessões. Mas não existem motivos de preocupação: a sociedade dissipativa também não permitirá que esses excêntricos passem fome; ela poderá até oferecer a alguém que, por um outro motivo, prefira não participar do grande espetáculo, um nicho como crítico. Numa tal sociedade, que em si nada mais é do que um complexo flutuante de minorias interligadas, os não-participantes deixam de ser eliminados; eles passam a ser usados no ciclo de catalisação.

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