São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Prenhe de história

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este é menos um livro para se ler de uma enfiada do que uma obra para se degustar na mais franca desordem. E gostaria de sugerir ao leitor que privilegiasse aquelas páginas em que, a par de uma notícia de impacto -a morte de John Kennedy, o tetra brasileiro-, figuram quadros menores, como que restos que a história devia ter apagado, tratando de gente esquecida ou de fatos ignorados, mas que por isso mesmo são o que confere o sabor do tempo. Pois essas sobras são, como nos quadros da Renascença, vedute que abrem para um mundo mais amplo, confuso e mesmo conturbado: o nosso.
Quem não teve a experiência, pegando uma velha página de jornal, de se interessar pela pequena nota que ficou truncada, no canto? Afinal, muitas vezes lembramos, ainda que vagamente, as principais matérias que escolhemos guardar: é o caso das grandes notícias, retumbantes, que os jornais proclamam "históricas". Mas não será mais rico, e por um viés perverso mais "histórico", justamente o detalhe discreto, aquele que se foi sem se saber?
E em certos casos a notícia menor é prenhe de história, até no sentido grandioso do termo -o predileto do grande público, hoje que os historiadores preferem as continuidades discretas, as mentalidades, o povo miúdo, e renunciam à crônica dos reis, batalhas e datas. Veja-se a Folha de 22 de agosto de 1968, narrando a invasão soviética da Tchecoslováquia. É o fim do "socialismo do rosto humano", a proposta do líder eslovaco Dubcek que, tivesse dado certo, talvez salvasse o comunismo e seguramente salvaria a Tchecoslováquia.
Pois no mesmo dia uma notinha informa que estudantes da USP impedem "o concurso para o provimento da cátedra de Política", por se oporem ao poder dos catedráticos. Detalhe, não é? Mera notícia de interesse restrito à academia. Mas quem acompanha a história recente do país talvez saiba -o que infelizmente a primeira página citada omite- que o vencedor do concurso foi Fernando Henrique Cardoso.
Assim, vemos que se distinguem as primeiras páginas. Umas se consagram à chamada "grande história", da qual hoje se fala com ironia, dado que os historiadores perderam o interesse por ela, mas que é a do grande impacto, em que o público acredita. É a Revolução de 32, o começo e fim da 2ª Guerra Mundial, as diretas-já, as eleições presidenciais de 89 e 94.
Outras vão por vias transversas, e fazem esbarrar, curiosamente, em séries históricas sem relação entre si. Por que Jorge Luis Borges fala na Folha no dia em que o PMDB homologa Tancredo e "Sarnei" (assim mesmo, com i)? Por que, junto com a célebre fotografia dos padres enfrentando pacificamente a cavalaria da ditadura, na missa da Candelária (5 de abril de 1968), anunciam-se as mortes de Assis Chateaubriand e Martin Luther King? E não é que, enquanto De Gaulle enfrenta maio de 68, Roberto Carlos se casa na Bolívia?
Evidentemente, trata-se de séries históricas desconexas, mas que ilustram o caráter altamente heteróclito que é o do jornalismo, no qual se mistura o trágico ao banal, até mesmo ao risível. Cada leitor fará sua síntese. Mas, na verdade, como vamos compondo nossas vidas a partir dessa mescla de coisa variada, quase sem sentido, o "nonsense" de algumas primeiras páginas aparece como uma alegoria da experiência de viver de qualquer um de nós. Mesmo quando não lemos jornais, nosso mundo assume o seu feitio.
Ainda assim, talvez a página mais estranha seja a de 11 de novembro de 1989: não consegui entender bem por que foi escolhida (ou concebida). Terá sido o caso Lubeca, ou a ambição presidencial de Silvio Santos, ou o caderno de cem anos da República? Imagino que seja a queda do muro de Berlim, mas esta notícia recebe tão pouco destaque, no conjunto, que não dá para saber...
Outro ponto a realçar é a mudança no jornal. Nas primeiras décadas, há muito texto, a linguagem é empolada e carregada de adjetivos e advérbios que endossam uma visão conservadora, na política e na moral. Praticamente se copiam os telegramas das agências internacionais. Mas, aos poucos, começa a Folha a cuidar da diagramação, aumentam as fotografias e ilustrações. No início dos anos 60, a mudança é perceptível. Diminui o texto, o jornal fica nervoso. Recentemente, consolida-se a cor, aumentam as notícias de comportamento e de economia, enquanto recua a política internacional.
No plano do conteúdo, em meados dos anos 70 o jornal empenha-se na luta pela democratização. A Folha ainda vive hoje o rescaldo deste período, o mais heróico de sua existência, e que teve seu auge na construção de uma aliança política (puramente civil) contra o regime militar, na campanha das diretas-já e, mais tarde, quem sabe último momento desse processo, na luta pelo "impeachment" de Fernando Collor.
Tudo isso se lê nas primeiras páginas -até o fato de que essa preocupação cívica vá cedendo lugar a um interesse crescente pelo consumo. Não se conhece sociedade em que a coisa pública e as compras vivam em harmonia, sequer relativa: parece que o espírito moderno do consumir sempre sacrifica os ideais sociais e republicanos. A Folha insiste, para manter sua independência em face dos governos, em ter a saúde financeira de uma empresa. Deve estar certa. Mas não é fácil conciliar o vezo crítico e o consumo.
Para terminar, é pena que esta terceira edição de "Primeira Página (as duas primeiras datam de 1985 e 1987) omita alguns dados básicos: por exemplo, não diz quem elegeu as 36 capas que agora aparecem pela primeira vez. Quase todas estas, começando na página 188, são posteriores a 1985. Sabemos que a primeira edição teve por principal responsável o historiador Nicolau Sevcenko, cuja apresentação vem reproduzida, mas falta o crédito de quem selecionou as capas novas, e desapareceram os textos de Otavio Frias Filho e Matinas Suzuki, o que é pena.
E, embora Luís Frias tenha razão ao apontar como é deficiente a memória que um jornal elabora de si, lamento que em sua apresentação, ao propor um CD-ROM com todas as primeiras páginas da Folha, ele critique a atual edição em papel. Uma edição integral não atende à mesma leitura que uma coletânea. Porque não se pode esquivar a questão, básica em se tratando de memória, de que esta sempre é uma seleção.
Ao escolher 200 primeiras páginas de seu arquivo, a Folha fala de si mesma, expondo os pontos que, com razão ou sem, considera altos de sua história, da história do Brasil e do mundo. Uma seleção assim feita não é apenas uma documentação, como num CD-ROM. É uma escolha, uma auto-imagem. Concordo com Nicolau Sevcenko que o jornal não espelha o mundo. Mas a Folha se mira num espelho e diz que rosto imagina ter. Não é interessante ter a oportunidade de ver esse auto-retrato em álbum?

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