São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Todos os tempos do jornal

NELSON BRISSAC PEIXOTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Uma revolução está acontecendo com a produção de CD-ROM de jornais? O CD-ROM da Folha demanda uma leitura não propriamente estética, mas jornalística. Ele é jornalismo? Que tipo de jornalismo anuncia? O CD-ROM nos faz repensar o próprio formato jornal.
Uma das formas mais voláteis de comunicação, o jornal ganha permanência no CD-ROM. O jornal transformou-se em referência: aquilo que era efêmero e descartável passa a ser consultado, adquire valor documental. Coloca-se a questão sempre trazida pela urgência do jornalismo: o tempo. Essas palavras e imagens agora podem ficar? E mais: as fotos e textos jornalísticos ganhariam outro sentido ao serem também feitos para consultas no futuro?
Essas palavras e imagens teriam tempo? Seriam capazes de durar mais, de não passar tão depressa? Nada parece mais impertinente do que pedir às notícias, por definição coladas aos acontecimentos, cada vez mais aceleradas, que fiquem. Esta aspiração, no entanto, no seu aparente anacronismo, aponta para questões atuais do jornalismo. Qual é a continuidade desta que é tida como uma das formas mais rápidas e provisórias de comunicação?
As transformações mais radicais na nossa percepção estão ligadas ao aumento da velocidade da vida contemporânea, o aceleramento dos deslocamentos cotidianos, a rapidez com que o nosso olhar desfila sobre as coisas. O olhar contemporâneo não tem mais tempo. A televisão adere, a princípio, a esse fluxo ininterrupto das coisas. A televisão é este contínuo de imagens, em que o telejornal se confunde com o anúncio de pasta de dentes, que é semelhante à novela, que se mistura com a transmissão de futebol. O espetáculo consiste na própria sequência, cada vez mais vertiginosa, de imagens.
A falta de inteireza do fluxo imagético televisivo põe em questão nossas relações com a mídia. A luta contra a insubstancialidade do mundo contemporâneo diz respeito à necessidade de resgatar a integridade das palavras e imagens, a sua capacidade de serem verdadeiras. Palavras e imagens que nos restituam, depois de todos estes processos midiáticos desagregadores, um pouco de real e de mundo.
A cidade, porém, impõe ganhar tempo. Andar depressa é esquecer rápido, reter apenas a informação útil no momento. Seria a anamnese o antípoda da pressa, da velocidade? Em vez de acelerar cada vez mais, diferenciar: conservar várias temporalidades no mesmo tempo, simultaneidade de passado e presente, presente e futuro. Retardar o fluxo, criando um espaço vazio no qual outra coisa possa se instalar. Um mundo da lentidão, que se dá tempo.
Mas é possível -no universo da comunicação instantânea- um lugar que não esteja preso ao que sucede? O livro, devido ao ritmo da escrita, tem a ver com isso. Muito do mistério da fotografia deve-se também a esta impressão de atemporalidade. O segredo dos retratos antigos, sua capacidade de fazer aflorar a expressão das pessoas, residia na exigência de uma longa exposição. Eles davam tempo para as feições ganharem seus verdadeiros contornos.
O CD-ROM traz para o jornal outras dimensões da temporalidade. Faz conviver, simultaneamente, passado e presente. Faz a notícia, o atual por excelência, habitar no futuro.
No CD-ROM, o jornal recupera sua vocação gutenberguiana: conter a Palavra. Torna-se o cruzamento das mídias, o Livro de todas as coisas. Ele agora tem todos os signos, todas as imagens, todos os sons. Nele não apenas se escreve sobre música, cinema ou futebol, mas também se vêem cenas e lances, ouvem-se acordes e palavras. A informação retoma sua capacidade de nos atingir no nervo ao fazer apelo a todos os sentidos, ao englobar todas as formas de percepção.
Um menu diversificado é oferecido no CD-ROM da Folha: o texto integral do jornal, mas também eleições, fotos, frases do ano, cadernos especiais (Senna, o Dia D, a Copa, Tom Jobim) e outras entradas. A compilação do texto completo talvez nem seja uma das aquisições mais radicais proporcionadas pela nova tecnologia. O CD-ROM é mais que uma versão compacta do grande e indiscriminado depósito de papel. Ele oferece desde logo caminhos através do material acumulado. O leitor passa a fazer um percurso sistemático pelos temas, tem ao seu dispor várias leituras do material informativo.
O CD-ROM serve, principalmente, para armazenar grandes massas de texto. Extensos agrupamentos textuais, produzidos fragmentariamente, tornam-se remissivos. É a mudança mais radical trazida pela edição eletrônica. Programas como o Folio, utilizado pela Folha, tornam todos os materiais remissivos: permitem procurar os textos por qualquer palavra e não só pelos critérios pré-estabelecidos (temas, autoria ou datas), comuns a toda biblioteca. Uma palavra qualquer engendra uma configuração de textos que jamais se pressuporia reunir. Aqui, como num labirinto borgeano, cada página nos conduz a uma biblioteca inteiramente nova.
Não se consulta mais por verbetes, mas pelas necessidades do pesquisador. O CD-ROM vai conduzindo pelos assuntos afins, atravessando diagonalmente os vários verbetes. O princípio do processo é a repetição, o reaparecimento da mesma palavra em várias situações. O computador não lê por assuntos, conhece apenas os códigos que identificam cada palavra, fora de qualquer contexto. Daí as novas constelações que vão se formando, um pouco ao acaso. O leitor tem inúmeras possibilidades de combinação.
Massas textuais implicariam a necessidade de uma nova retórica? Um texto para CD-ROM tem de ser repetitivo, pois as palavras reiteradas facilitam a consulta. Criam múltiplas entradas, várias possibilidades de encontrar o mesmo assunto. Demandam um outro código textual, diferente do parnasiano, cujo princípio é a não repetição das palavras, o uso sistemático de sinônimos. Um texto armazenado em CD-ROM segundo os parâmetros convencionais perderia a remissividade. O redimensionamento do jornal exige uma nova estética textual.
Hipertexto, o CD-ROM recorta o factual jornalístico segundo determinadas leituras -vias de navegação-, pelas quais o leitor pode acompanhar as matérias publicadas durante o ano. Uma outra trama de percursos se sobrepõe às editorias diárias (Brasil, Mundo, Cotidiano, Economia, Esportes). Até vinculando, hipoteticamente, matérias de diferentes procedências. Um outro jornal, retrospectivo, portanto de certo modo mais reflexivo, se faz aqui. Diferente da enciclopédia iluminista, que justapõe todos os assuntos com igual medida, ele abre alguns caminhos no panorama contemporâneo. Frestas na massa de informações que nos assola todos os dias. O CD-ROM, portanto, continua sendo jornal.
Com isso -dizem os novos teóricos da historiografia e da informática, como Giselle Beighelman- surgem diferentes maneiras de pesquisar. Não se vai mais consultar um arquivo. Com o CD-ROM, o arquivo é que vem à nossa casa, torna-se doméstico. O poder do arquivista consiste, tradicionalmente, na forma de catalogar. Ele pode fazer desaparecer um documento. A rubrica utilizada para o registro pode então impedir o acesso ao material. O hipertexto, assim, rompe a onipotência de quem criou os critérios de arquivamento. O CD-ROM conserva o material como pura informação.
Estaríamos diante de uma revolução documental? A tecnologia pode conservar tudo? A digitalização de documentos permitiria o armazenamento seguro e definitivo de todas as informações, a compactação da memória? A compactação pode ser uma ilusão: teríamos de guardar também equipamentos, que ficam obsoletos. As tecnologias estão sujeitas ao mesmo processo de superação que as criadas anteriormente para arquivar material impresso. Todos conhecem as dificuldades que se tem, hoje, de consultar microfilmes. Quem possui arquivos em Word 2 já enfrenta problemas em encontrar equipamento para rodá-los. Luta-se conta a inexorável passagem das coisas. É instigante ver o jornal -tido como um dos agentes da aceleração- envolvido neste conflito.
No CD-ROM da Folha podemos ter consciência do impacto que a morte do Senna teve na sensibilidade nacional. Ou, então, perceber, através da cobertura sistemática da Copa, baseada em tabelas e gráficos, como mudou o esporte e nossas abordagens dele. Ver a importância que se deu ao Dia D, num ano em que se fez balanços críticos das democracias ocidentais.
As frases ditas ao calor das disputas deixam transparecer, quando coletadas, toda a mecânica do jogo político. A equiparação de moedas atualiza a nossa vida financeira dos tempos da inflação, tornando comparáveis e compreensíveis as transações. Os conversores de medida, para sapatos e roupas, são úteis para quem vai viajar. Dispositivos que, na dinâmica da globalização, relativizam todas as diferenças, as medidas, as moedas. Mas é com Tom Jobim que a edição eletrônica evidencia suas possibilidades: a entrevista tem som. Um lirismo que o jornal impresso não poderia jamais guardar.
É no fotojornalismo, porém, que talvez o impacto do CD-ROM seja maior. Hoje só vemos uma vez as fotos publicadas nos jornais. Como guardar imagens muito reticuladas, recortadas em papel amarelado? No computador poderemos novamente ver reunidas as imagens do fotojornalismo, como antes se viam nos livros de fotógrafos. Teremos um renascimento do fotojornalismo?
Uma das fotos se destaca: na chacina da Penha, a frase "obrigado Senhor por mais um dia", pintada no muro, atrás dos fuzilados, aos quais não foi dado mais um dia. Como se lerá, daqui a alguns anos, a trágica ironia dessa imagem? Guardará o impacto da atualidade policial ou se revestirá de uma dimensão mais estética? Isso influenciará o fotojornalismo que se vai fazer no futuro?
Através do CD-ROM -encruzilhada de todas as linguagens, lugar em que as palavras e imagens remetem a todas as outras- uma nova idéia de jornal pode estar nascendo.

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