São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Um empreendedor na periferia do capitalismo

CARLOS ALBERTO SARDENBERG
DA REPORTAGEM LOCAL

Em março de 1858, o então ministro da Fazenda do Brasil, visconde de Sousa Franco, não conseguiu fazer com que o Banco do Brasil, já estatal, atuasse no mercado de câmbio para estancar a desvalorização da moeda nacional, o mil-réis. Apelou, então, para a iniciativa privada. Chamou para a tarefa o banqueiro, industrial e comerciante Irineu Evangelista de Sousa, barão de Mauá. O barão topou, ajudou a realizar o objetivo de política econômica e ainda embolsou lucro em libras.
O incrível episódio relatado pelo jornalista Jorge Caldeira, em seu monumental livro "Mauá - Empresário do Império", desenha características essenciais de um homem que deve ter sido o maior empreendedor da história do Brasil.
O episódio do câmbio impressiona pelo tamanho. Em três meses, a casa bancária de Mauá vendeu 1,8 milhão de libras esterlinas (moeda inglesa, então padrão monetário internacional) e comprou mil-réis. Esse 1,8 milhão correspondia, nota Caldeira, a um sexto das exportações brasileiras.
Seria como se hoje um banqueiro pudesse vender cerca de US$ 7 bilhões, comprando reais equivalentes. Para comparar ainda: no auge da crise cambial de março último, o Banco Central vendeu US$ 4 bilhões.
Mas o banco de Mauá era privado e o ministro da Fazenda garantia as operações com recursos do Tesouro apenas até 750 mil libras, menos da metade do que o barão arriscou na jogada. E eis aí outra característica apontada por Caldeira: como todo empresário da época, o barão em diversas vezes atuou com apoio e concessões do governo. Mas, ao contrário dos demais empresários, ele sempre colocava mais dinheiro seu.
E, finalmente, Mauá só topava negócios que lhe pareciam rentáveis e seguros, mesmo que apenas ele percebesse isso no momento. E foi o que aconteceu com o episódio do câmbio.
Em 1858, Mauá havia simplesmente havia antecipado idéias sobre o valor real da moeda que só viriam a vingar no final do século. Ele operou com base em estudos pessoais, que ainda atraem a admiração dos economistas.
Tendo optado por fazer comparações entre valores da época, Jorge Caldeira consegue expressar o tamanho do empresário Mauá. Por exemplo, em 1860, ele controlava ativos de US$ 60 milhões. Nessa época, o milionário americano Cornelius Vanderbilt deixava a maior herança do planeta, de US$ 100 milhões.
Outro exemplo: em 1850, das dez maiores empresas brasileiras, oito pertenciam a Mauá, incluindo bancos, estaleiros, fundição, estradas de ferro e companhia de iluminação a gás do Rio. As outras duas maiores empresas eram estatais, mas tinham a ver com Mauá. Eram o Banco do Brasil, que fora tomado de Mauá, e a estrada de ferro dom Pedro 2º, hoje Central do Brasil, construída com aval do barão.
E por aqui a leitura do livro de Jorge Caldeira começa a passar um sentimento de inquietação em relação ao Brasil. O jornalista na verdade oferece muito mais que a biografia de Mauá. Seu livro nos traz história econômica do Segundo Império e, especialmente, uma história da política econômica desse período.
E por aí se vê como um empreendedor moderno, um empresário respeitado nos meios financeiros europeus foi arrasado no Brasil por políticas aristocratas e conservadoras.
Caldeira conta sobre o início de sua pesquisa de quatro anos: "Comecei a perceber que muitos problemas que pareciam atuais não o eram tanto assim, e me senti tentado a olhar mais para a figura de Mauá, buscando futuro no conhecimento do passado".
Achou. Tome-se o caso do Banco do Brasil, constituído por Mauá como empresa privada de capital aberto, conforme padrão avançado para a época. Pois o imperador e os conservadores entenderam que o banco de Mauá dava crédito demais, a juros baratos demais. Ou seja, empreendimentos demais.
A reclamação tinha origem: os donos do capital acumulado no tráfico de escravos, que viviam de renda de juros, e os fazendeiros, que não queriam qualquer mudança no sistema de propriedade e no regime de escravidão.
O imperador e o governo exerceram pressão enorme sobre o Mauá, até passar lei tornando obrigatória a transferência do BB (Banco do Brasil) para o Estado, em 1853. E já com maracutaia: foram colocadas à venda 70 mil novas ações, mas havia pedido de compra de 254 mil. Em vez de fazer um leilão para vender pelo melhor preço, e faturar o ágio, o governo preferiu fazer uma lista dos que teriam direito à compra, pelo preço fixo, muito abaixo do valor de mercado.
Entre os beneficiados, apareceram os amigos de dom Pedro 2º e familiares, inclusive sua esposa, a imperatriz Teresa Cristina. Logo em seguida, saiu a diretoria do BB estatal, com 15 integrantes, contra os três do banco de Mauá. Escreve Caldeira: "em vez de negócios privados, negociatas públicas".
Toda a vida de Mauá foi nessa tensão, a luta de um empreendedor capitalista moderno em um ambiente atrasado e conservador. Ele foi, inicialmente, um vencedor: de caixeiro no comércio do Rio aos 9 anos, guarda-livros e chefe de comércio aos 15 anos, já era o maior empresário do país antes dos 40 anos, com empreendimentos no Brasil, Uruguai, Argentina, Inglaterra e França.
Suas empresas e seu modo de operação estavam adiantados de décadas. Ele foi pioneiro das estradas de ferro, da iluminação a gás, do telégrafo, do saneamento pelo serviço de águas e esgoto. E seu pioneirismo chegava a detalhes: foi o primeiro a cercar seu gado com arame farpado, a usar o arado a vapor e a industrializar a carne.
Na construção desse império, apoiou a política brasileira junto a Argentina e Uruguai, aliás lutando contra as guerras e se esforçando pela integração econômica, proposta em inúmeros estudos. Uma clara antecipação do Mercosul.
O empresário trabalhou com concessões e monopólios oferecidos pelo governo, mas em todos os casos usou isso construindo empresas sólidas e rentáveis, prestadoras de bons serviços públicos. Como nota Caldeira, suas ferrovias saíam dez vezes mais baratas que as construídas pelo governo.
Mas todo esse império foi demolido por injunções de uma política econômica que favorecia o atraso e os interesses dos capitalistas ingleses. Uma política econômica que conseguiu a proeza de decretar a falência de uma empresa sólida, num país em que o esporte nacional era dever e não pagar.
Mauá pagou todos seus credores e acionistas e ainda terminou a vida rico. Já tinha o título de visconde, mas a fama, no Brasil, de especulador irresponsável. Como notou Caldeira, em frase que teria o endosso de Mauá: "Enquanto descia na hierarquia dos negócios, Mauá subia na da nobreza, o que não deixava de ser um mau sinal".
O inquietante é isso. A política brasileira tratou mal seu maior empreendedor. E esse passado que o livro de Caldeira revela parece, não raro, muito atual.

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