São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O teleopoeta

MARSHALL BLONSKY
ESPECIAL PARA A FOLHA

O termo teleopoético é de Derrida e foi usado num seminário recente em Nova York. Te-le-o-po -é-ti-co, adj. - capaz de inventar o futuro neoderrideano", do grego: tele-, distância + telos, realização + poiétés, "fazedor". A teleopoética seria aquele gesto por meio do qual, anunciando ou fingindo anunciar o que está por vir, produzo o produzir o evento. Um teleopoeta está sempre fazendo o futuro. Vamos a Washington, D.C. observar essa estrutura em operação.
Hotel Madison, 20 de outubro de 1993. Cinquenta convidados vieram ouvir exposições sobre as agendas européia e norte-americana de alta tecnologia: Perissich, chefe de gabinete da Comunidade Européia, depois Mary Good, Subsecretária de Comércio, e finalmente Sculley, o debatedor. Ele fala sem anotações:
"Estamos num momento decisivo, o que é fácil de dizer -mas este não é um falso alarme. Tínhamos certeza de que teríamos um lugar de destaque na economia globalizada, e que uma economia globalizada seria uma economia em crescimento. Não aconteceu assim. Não podemos usar o velho modelo de competitividade industrial. O novo modelo nos obriga a pensar em margens de produção decrescentes, em dimensões mais enxutas de tempo e distância, em trabalho especializado tão eficiente em regiões remotas como aqui. O grande crescimento positivo da China, da Ásia e da América Latina está desviando o crescimento com que contávamos para os EUA e Europa. Temos de repensar pontos básicos: como fazer as coisas, o conceito de computador, de empresa, de Estado".
Sculley evocou a imagem de uma pintura quase negra. Ele está fingindo, anunciando o início de uma pauperização nacional justamente para que estes poderosos possam evitá-la. Evitá-la através da coopetição, um neologismo que sugere políticas industriais que promovam a competição e a cooperação entre empresas e decisões governamentais. "Temos que definir o mundo nos termos da corporação virtual... tendendo para o pequeno, o não-hierárquico... não podemos mais definir a competição em termos de companhias".
Na essência da coopetição (por si só já polêmica para este público) está a regressão das nações: na medida do possível, suicídio parcial dos governos. A mensagem de Sculley: apoiemos a soberania nacional enfraquecida para libertar as companhias dos passaportes, para chegar a uma espécie de nacionalismo sem nação, inexistente nos mapas mas presente nos mercados financeiros e na cultura.
Nosso teleopoeta está abrindo as portas do futuro, seu futuro. A reorganização do trabalho que Sculley esboçou não implica apenas um "enxugamento e portanto um trabalho mais duro para os que conseguirem permanecer no sistema. Ela exige uma nova instrução básica, apropriada às mudanças tecnológicas que empurram a globalização -a saber, a substituição dos sistemas análogos por digitais (que deve estar 90% completa nos EUA por volta do ano 2000). "Sotto voce", Sculley está in-formando -difundindo suas formas mentais pela sala de jantar.
John Sculley já fizera antes esse tipo de coisa -em 1988, quando filmou "Knowledge Navigator" (navegador do conhecimento). Não tendo sido realizado pela BBDO, agência de publicidade da Apple, o pequeno filme era tosco, o diálogo amadorístico. O filme retratava tão astuciosamente o que não existia que gerou um desejo pela coisa ausente (não há desejo sem presença).
"Decidimos fazer 'Knowledge Navigator'" -Sculley me conta- "porque eu havia me lembrado de um encontro que Steve Jobs e eu tivéramos com o Dr. Lang, o inventor da Polaroid. Lembro-me de ouvir o Dr. Lang dizer que 'grandes produtos não são inventados, eles sempre existiram. Estão esperando sua hora -temos que descobri-los, não inventá-los.' Steve disse: 'Por Deus, era assim que víamos o computador pessoal. Não poderíamos ir conversar com os consumidores para lhes perguntar como deveria ser o computador pessoal, como fazíamos em 1976 porque ninguém entenderia'."
Foi um acontecimento inaugural. "O PC não tinha nada a ver com os grandes computadores de antes. Era baseado na idéia de 'uma pessoa, um computador'; de que um computador para cada indivíduo mudaria a vida das pessoas, dando-lhes poder e fornecendo uma ferramenta para a mente. "Eu disse: 'Não temos que esperar até podermos construir o produto, como Steve fez com o Apple 2 ou com o Macintosh'..."
Sculley não esperou por um futuro que todos achavam impossível. Queria fazer as coisas aqui e agora. Decidiu fazê-las através da imagem: "podia simular a experiência, mostrá-la num vídeo..."
Naquele vídeo, ele chegou a sugerir que, dentro do "Navigator", haveria uma forma de inteligência artificial, representada por um agente que só existia dentro da tecnologia e de aparência semelhante à de um andróide de "Star Trek".
Resultado: essa representação antropomórfica era estranha à indústria de computadores, que via o computador pessoal como uma ferramenta, não como um assistente. Por isso, ela o metaforizou como desktop (conotação de trabalho pesado). Sculley conceitualizou-o como inteligência e metaforizou-o como conversa (conotação de jogo, de corpo do outro). A inteligência não estaria só dentro do computador, mas em toda a rede.
"Senti que a tecnologia iria mudar nossas idéias básicas, sendo uma delas a de que as comunicações são caras "-diz Sculley.
O mundo se torna digital. Os custos não são mais problema, dada a nova capacidade das redes num mundo se bifurca em redes terrestres ou sem fio -ambas digitais. Tomemos uma das metades desse reino, a tecnologia sem fio análoga de hoje: o espectro de frequências é limitado. Mas num mundo digital, o espectro de frequência pode ser expandido ao menos dez vezes. Temos só 29 milhões de telefones celulares -quantos haverá amanhã? Não muitos mais, ao menos com a tarifa a 40 cents por minuto. Mas derrubem a tarifa em um terço, como a nova frequência tornará possível: telefones para toda a vida, em toda parte do mundo -em três anos.
O leitor terá notado que minha enunciação mudou no parágrafo acima. Fui fisgado pelo tom afirmativo de Sculley, que é, afinal, messianista (em contraste com messiânico). OK, tudo bem, podemos dizer que esse "arrivant, esse Novo está surgindo pelas limitações do antigo espectro de ondas, o mesmo usado pelos rádios antigos de serviços como ambulância, polícia, bombeiros e táxis, que agora também se digitalizam. Na passagem, fazem-se fortunas. Não o ouro, mas a frequência.
Podemos saber ainda mais. Como a frequência torna-se subitamente disponível, o mundo se desenvolve em toda parte -assim desenvolvendo sistemas de telefonia, não mais terrestres, mas sem fio. Europa Oriental, China, Nova Zelândia, Brasil -seu caminho será o sem fio não apenas por causa dos custos, mas também por que seus territórios amplos e acidentados fazem do sem fio uma solução elegante. Negócio feito à maneira dos anos 90. Qualquer que venha a ser a surpresa, o acontecimento do século 21, não será esta. E apenas sete anos depois de Sculley ter surpreendido com seu "Navigator -a reinvenção através do sem-fio é o lugar-comum.
Nesse ínterim, a tecnologia de computadores tornou-se mais e mais barata. Simultaneamente, a tecnologia dos bens de consumo começou a se deslocar do analógico para o sistema digital e binário, de zeros e uns. Tecnologia digital e binária exige software -justamente aquele componente que a indústria de informática ainda não fornece em escala tão ampla.
Estão dadas as condições para uma simbiose. A indústria de informática tem a tecnologia de software de que a indústria de bens de consumo precisa, e esta última tem a miniaturização do hardware de que a indústria de informática necessita. Convergência é a nova palavra de ordem. E conforme essas indústrias se aproximam, o que tinha que ser conceitualizado como impossível quando Sculley fez "Navigator" tornou-se possível. O que era possível? Aparelhos de custo baixo e grande volume que podem ser conectados aos novos sistemas ou séries de sistemas digitais, a cabo ou sem fio.
"O tempo está fora dos eixos": o tempo não é mais uma flecha, pensa Derrida. Os eventos não se desdobram mais como uma tensão que exige uma resolução, uma consequência, um fim. A vida não conta história alguma. O mundo parece ter parado.
Mas não o mundo convergente. Não seus criadores. Os Sculleys não querem saber nada disso, muito embora o último livro que Sculley leu antes de deixar a Apple, tenha sido foi "O Fim da História" de Fukuyama. Sculley tomou o caminho derrideano... Antes, ele caminhou ardilosamente para o lado de Fukuyama, creio eu que para assestar a ponta da flecha bem em cima da Telecom. Quando se está construindo um novo mundo, não se pode acreditar que as coisas vão mal. Ademais, o crescimento está perdendo impulso. Longe de sombrio, o futuro é radiante.
Um Sculley, diferentemente de um ingênuo Fukuyama, finge o fim da história. Finge-se um parêntese na temporalidade a fim de reunir e empregar as próprias forças dentro da cesura assim criada. Algo como o contador de histórias que diz "de repente....". É um efeito de distanciamento. Sculley "de repente" monta, espacial e temporalmente, o espaço ou o palco para uma peça. Ou, como meu velho professor Louis Marin teria dito, Sculley produziu um clinâmen, uma tangente num ponto do arco, uma pequena lacuna na corrente. Essa cadeia é a dos negócios costumeiros, do análogo, do industrial, do nacional, do local, do "soccer" e do samba. Sculley toma a tangente: o digital, o global.

Traduções de SAMUEL TITAN JR.

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