São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Brasil se especializou na tecnologia de fachada

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A história da ciência e da tecnologia em um país periférico pode à primeira vista parecer um assunto sem graça. Não é, porque as histórias de fracassos e tragédias sempre deram melhor leitura que descrições grandiloquentes de sucessos. Um livro como "História da Técnica e da Tecnologia no Brasil" é interessante até mesmo pelos seus vários equívocos.
O livro não trata da ciência que se convencionou chamar "pura" ou "básica". Trata de algo mais voltado para o cotidiano dos cidadãos, técnica e tecnologia. O organizador da obra, Milton Vargas, define técnica como "uma habilidade humana de fabricar, construir e utilizar instrumentos". Técnicas são fundamentais para a existência material de qualquer sociedade humana. Chimpanzés usam instrumentos primitivos às vezes, mas foi o gênero Homo quem levou a atividade mais a sério -tanto que um dos primos extintos do Homo sapiens foi batizado de Homo habilis.
Tecnologia, para existir, segundo os autores do livro, depende de algo chamado ciência moderna. A palavra tem sido muito banalizada por exemplo pela propaganda, que trata um novo modelo de cafeteira como uma nova e revolucionária "tecnologia de fazer café".
Tecnologia não é um produto ou simplesmente um processo, mas sim um conhecimento. "Para nós, tecnologia é cultura que se tem ou não, cuja aquisição se dá por uma inserção de todo o sistema sociocultural do país no assim chamado 'mundo moderno' ", continua Vargas.
Ou seja, muito do que é chamado de tecnologia "brasileira" é na verdade uma mera fachada, seja a importação de caixas-pretas, seja a ocasional tentativa de reiventar a roda.
Tecnologias em geral existem para resolver problemas concretos. Se alguém precisa de eletricidade, pode construir uma pilha ou uma usina hidrelétrica.
A história da técnica e da tecnologia no Brasil deve portanto ser entendida como uma tentativa de resolver os problemas que a sociedade brasileira achava importante resolver. Infelizmente, ela não quis resolver muita coisa, preferindo se acomodar em certos papéis, como o de produtor de sobremesa -café e açúcar. Os raros homens de visão que tentaram mudar esse estado de coisas eram candidatos naturais a heróis trágicos.
Os autores do livro mostram clara indignação contra esse fato básico da história do país. Com maior ou menor sensatez, uma visão nacionalista atravessa os artigos da obra.
O livro organizado por Vargas é uma súmula feita por vários autores. Com isso ele sofre de dois problemas, um deles natural: falta de profundidade nos diversos temas, e conteúdo desigual. Ruy Gama fez um ótimo artigo sobre a "História da Técnica no Brasil Colonial"; o mesmo não se pode dizer de "Engenharia Militar", de Potiguara Pereira.
A idéia básica também foi se concentrar em fatos. Esse é outro pecado. Uma mera listagem de fatos, sem nenhuma análise, como em alguns dos artigos, é tão ruim quanto elucubrações abstratas. Certos textos parecem um relatório de mestrando informando ao orientador qual a abrangência do tema que ele quer estudar.
Mesmo os fatos às vezes têm problemas. Por exemplo, o texto citado de Potiguara Pereira dá uma rapidíssima pincelada no papel do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai, "seu período de maior produção". Mas ele cita como exemplo três navios construídos depois da guerra! Só esse já seria um tema fascinante.
O Arsenal construiu boas canhoneiras encouraçadas e monitores fluviais durante a guerra, mas nos anos seguintes a construção naval se estiolou. Os navios estavam deixando de ser de madeira e movidos à vela e passando a ser de ferro e aço e movidos a carvão. Quem não acompanhou o avanço tecnológico, como o Brasil, ficou apenas a ver navios.

HISTÓRIA DA TÉCNICA E DA TECNOLOGIA NO BRASIL, Milton Vargas (organizador), Editora Unesp/Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza, São Paulo, 1994.

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