São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O positivista pós-moderno

LELITA BENOIT
ESPECIAL PARA A FOLHA

A maquinaria pós-moderna de produzir belas falações, esta estranha construção que desencadeia efeitos de reluzente imagética, não se cansa de trabalhar. Em artigo intitulado "O Fim do Ideal Democrático (Mais! de 19.03.95), Michel Maffesoli põe em movimento, ainda uma vez mais, sua discursividade de metáforas, imagens e idéias para apontar uma suposta e radical mudança qualitativa da sociedade: "o fim do ideal democrático e o surgimento da "comunidade do sentimento.
No que se baseia Maffesoli para se apresentar como arauto do absolutamente novo em matéria de sociologia? Pode parecer estranho, absurdo mesmo, entretanto, Maffesoli talvez tenha construído a sua maquinaria discursiva não com peças concretas da realidade social, mas com certa reanimação de metáforas, imagens e idéias nada novas, datadas do século 19, tão desprezado por este autor.
Profeta, entre outros, do desencantamento pós-moderno, Maffesoli talvez esteja, paradoxalmente, fazendo eco, em seus textos, a uma sociologia enterrada em livros nunca relidos porque "ultrapassados e de interesse da mais pura excentricidade acadêmica: a sociologia positivista de Auguste Comte. No que se assemelha as "novas idéias maffesoliana às peças conceituais colecionadas no secular museu sociológico-positivista?
Em seu artigo "O Fim do Ideal Democrático, Maffesoli mostra-se particularmente indignado com a incapacidade "da maior parte da intelligentsia, universitários, jornalistas e formadores de opinião de "entender, e até mesmo de ver, a mudança qualitativa que está se operando nas sociedades, mudança esta que significaria a ruína do "contrato social, o fim do ideal democrático. Esta incapacidade inscrita no olhar dos intelectuais de hoje decorreria, segundo o autor, do anacronismo das categorias sociológicas que empregam para ler o social.
É que, agora, diz Maffesoli, a "cisão que atravessa o "corpo social é de tal natureza que não se enquadra mais nos velhos esquemas "de classes, de categorias socioprofissionais ou de qualquer outra categoria identitária da mesma laia. Mas, surpreendentemente, o próprio Maffesoli parece não estar munido de categorias sociológicas mais adequadas.
Senão, como então entender que recorra à astrofísica contemporânea para "explicar a nova "cisão (não-contraditória) do social em particularidades, em pequenos grupos, em "tribos urbanas? Diz ele: "Essa cisão pode ser comparada ao 'buraco negro' descoberto pela astrofísica contemporânea. Tal metáfora é casual, ou a comparação entre e buracos negros e a "nova energia social está vinculada em crença pós-moderna na igualdade entre o social e o natural? O domínio da sociologia, na perspectiva pós-moderna, seria redutível epistemologicamente ao domínio da física?
Maffesoli não é o único a fazer comparações entre fenômenos sociais e físicos. Jean Baudrillard recorre a este recurso epistemológico em seu ensaio "À Sombra das Maiorias Silenciosas (O Fim do Social e o Surgimento das Massas" (ed. Brasiliense). Baudrillard emprega exaustivamente o léxico particular da física para falar da sociedade de massas. Simples exploração imagética do seu objeto? Nem sempre. "A configuração (das massas) é idêntica à dos buracos negros, afirma Baudrillard. Como estes "sepulcros estelares, as massas são a coisificação absoluta. Tanto os buracos negros quanto as massas têm a mesma e desafiante configuração do não-sentido e representam "uma verdadeira revolução para "o processo de conhecimento tradicional", conclui, afinal, Jean Baudrillard (pág. 28).
Tanto Maffesoli quanto Baudrillard recorrem ao paradigma físico, na tentativa de explicar aquilo que, no seu entender, outros não conseguem sequer visualizar: uma suposta nova realidade que surge a partir do "desaparecimento do social (Baudrillard) ou do "fim do contrato social (Maffesoli). Este recurso comparativo não é, talvez, acima de tudo, um atalho para nos afastar dos contornos históricos da realidade social contemporânea? Atalho sedutor de desencantamento com toda práxis e de convite ao "quietismo aristocrático do pensamento, para usar, aliás, uma expressão de Maffesoli. Pois o que pode representar, do ponto de vista da práxis voltada para as transformações sociais, um amontoado de seres colocados em pé de igualdade com os buracos negros inatingíveis e absolutamente desprovidos de significado?
A idéia não é nova. Pensar que a física dos astros tem algo a ensinar à sociologia é uma crença do originário positivismo comteano (1). A astronomia é "educativa: ela nos habitua à existência de uma ordem, a do universo, regida por leis absolutamente "independentes de toda modificação humana. Após nos familiarizar com este paradigma da fixidez absoluta, do ordenamento perfeito, da positividade imodificável o positivismo acreditava ter criado o terreno para plantar suas idéias sociais. A sociologia do século 19, hoje supostamente envelhecida, apoiava-se no paradigma físico para ilustrar a impermeabilidade do social "a qualquer modificação, a qualquer significado "metafísico ou a qualquer práxis humana transformadora. Não é algo semelhante ao que tenta fazer agora a chamada sociologia pós-moderna com suas comparações entre os fenômenos da massificação/segmentação do social e os fatos da física contemporânea?
Mas, se o novo, em sociologia, não consegue se distinguir do velho, não é apenas quanto ao modo de ver e de pensar as realidades sociais existentes; também em suas previsões quanto ao tópos futuro da humanidade, a sociologia maffesoliana, em particular, parece se calcar no desgastado positivismo de um século atrás.
Em seu artigo "O Fim do Ideal Democrático, Maffesoli anuncia a existência daquele que é o modelo social do futuro: a comunidade do sentimento. Diz Maffesoli que prevalece agora, e cada vez mais é privilegiado, o que é "próximo, familiar, cotidiano. O social descentra-se do contrato social, fragmenta-se e multiplica-se em tribos e grupos que passam a girar na órbita (nova) do puro sentimento, da imprevisível irracionalidade espontânea do sentimento. Greves acontecem, por exemplo, "desprovidas de reivindicações razoáveis e o social, agora cindido, se reaglutina, aleatoriamente, "pelo prazer de se estar junto": nova lógica social, que não é política nem econômica, mas sim, do sentimento. Este novíssimo tópos centrado no sentimento já se articula sob nossos olhos, acredita Maffesoli. Mas, cegos por categorias ultrapassadas, não vemos sequer o que se passa, ali mesmo, em nossa vizinhança, em nosso círculo familiar.
Em "O Tempo das Tribos - O Declínio do Individualismo nas Sociedades de Massa" (ed. Forense-Universitária), Maffesoli vai além, ao descrever a "centralidade subterrânea do sentimento como sendo uma nova forma de religiosidade. A religião maffesoliana vem para substituir o contrato social falido? Mas, de qualquer modo, religião, segundo Maffesoli, seria o termo correto "para designar tudo que nos une a uma comunidade. Ora, tudo isto (lógica do sentimento social cimentado pelo sentimento, religião do sentimento) nos remete de volta ao século 19, à sociologia positivista-comteana e suas "empoeiradas peças ideológicas.
Em sua gênese histórica e teórica, a sociologia comteana autodeterminou-se sobretudo enquanto tecnoteoria do controle social. Pois bem, esta tecno-sociologia "a serviço dos conservadores acredita que "na afetividade, e não na racionalidade encontra-se o fundamento primeiro da unidade social, de maneira análoga à sociologia maffesoliana. Para Comte, a França pós-1789 vivia um período de indesejável anarquia. Ora, perguntava-se ele, como restabelecer a ordem numa sociedade acostumada a "ver direitos por toda parte? Só uma sociedade que esquecesse o igualitarismo dos direitos, que anulasse o indivíduo frente à totalidade social (a "Humanidade), que, enfim, abandonasse a idéia racionalista, iluminista e "metafísica do contrato social poderia reverter o quadro anarco-revolucionário.
Foi assim que o positivismo chegou a sua mais ousada criação sociológica: a Religião da Humanidade. A religião positivista cultua o "amor à Humanidade e este sentimento é, por sua vez, o que pode unir uma sociedade (2). A "lógica dos sentimentos altruístas e do amor à humanidade permeia o tópos futuro da humanidade sonhado por Comte.
Aliás, remeter a religião maffesoliana à positivista nada tem de excepcional já que o próprio pós-modernismo vê grande semelhança entre elas. Maffesoli confessa abertamente que sua abordagem da "socialidade contemporânea inspira-se em certos mitos solidaristas, entre os quais destaca, nada mais nada menos, do que a Religião da Humanidade. Em "O Tempo das Tribos", diz que Comte, "o mais positivista dos sociólogos (sic), formaliza, com sua Religião da Humanidade, o mito do consenso sinergético e da afetividade, como laço comunitário fundador. O pós-moderno Maffesoli assinala a atualidade das idéias comteanas: "o solidarismo ou a Religião da Humanidade podem servir de pano de fundo para os fenômenos grupais com os quais somos confrontados nos tempos que correm (pág. 104).
Maffesoli, como se vê, revisitou não apenas o Comte das obras poucas vezes lidas, mas, por certo, revisitou também aquele Comte do escuro e frio apartamento da secular rua Monsieur-Le-Prince, em Paris. Velho apartamento que ainda hoje abriga os últimos vestígios da Religião da Humanidade e do derradeiro misticismo de um filósofo de triste figura que acreditava ser o profeta de um novo tópos da humanidade, mas que, no final das contas, não fez muito mais do que semear, aqui e ali, profundo conformismo político.
A "atualíssima teoria pós-moderna e o "ultrapassado positivismo são, talvez, sob certos aspectos, máquinas discursivas análogas quanto aos efeitos a serem produzidos, ainda que hoje a nova (velha) maquinaria ideológica se mascare com reluzente discursividade imagética. Ah, ultrapassado século 19! Quem diria que a velha rua Monsieur-Le-Prince, a poucas quadras da medieval Sorbonne, renasceria pós-moderna?

NOTAS
1. Comte, A.: "Discours sur l'Esprit Positif", ed. Vrin, Paris, 1990, pág. 170 e ss.
2. Cf. Comte, A.: "Catéchisme Positiviste", ed. Garnier, Paris, s/d.

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