São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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O PENSADOR DO NAUFRÁGIO

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Hans Magnus Enzensberger, nascido em 1929, poeta e ensaísta sobretudo, mas também autor de teatro e de um livro inclassificável -história? ficção? colagem?- sobre o anarquista espanhol Durruti, "O Curto Verão da Anarquia", é hoje o maior homem de letras da Alemanha. Ele vem ao Brasil no próximo mês, quando lançará no país dois livros -"Mediocridade e Loucura" (editora Ática) e "Visões da Guerra Civil" (Companhia das Letras)- e fará conferência no evento Banco Nacional de Idéias (dia 16 de maio), além de uma série de palestras com o apoio do Instituto Goethe em Curitiba (dia 19), Porto Alegre (dia 23), Salvador (dia 26), Rio de Janeiro (dia 29) e novamente em São Paulo (dia 30).
Adolescente no final da guerra, Enzensberger não apenas viveu de olhos abertos sob o nazismo, como viu seu país em ruínas. Sua juventude transcorreu na época da reconstrução e, depois, do "milagre alemão". Ou seja, seu habitat natural não é a estabilidade, mas a transformação e suas crises. Daí o fato de entendê-las e analisá-las com tanta agudeza. Daí também o fato de, não raro, prevê-las antes dos outros.
A poesia que começou a publicar cedo, com títulos como "Os Lobos Defendidos Contra os Cordeiros", voltava-se contra a placidez literária alemã, abordando temas políticos de modo provocativo, o que já nos anos 50 lhe valeu o apelido de "angry young man" (jovem irado) de seu país. Sua obra ensaística, inseparável da poética, foi elogiada na década seguinte por Theodor Adorno: "na Alemanha hoje há algumas tentativas e Enzensberger". Muitos o consideraram um porta-voz da geração de estudantes que se rebelou em 1968, embora sua posição fosse sempre mais complexa.
Sua poesia associa-se de fato à de toda uma geração de poetas continentais que começou a escrever não a despeito das ruínas da Europa, mas no meio delas, tentando reconsiderar tudo que havia levado ao desmoronamento. A característica central de seu ensaísmo é tomar o partido da realidade visível contra abstrações esquematizantes. Por isso, em qualquer momento, é difícil dizer a que tendência ele pertence, se ele é contra ou a favor do mercado, pró ou anticomunista. Ele é apenas minucioso. E honesto.
Honestidade e minúcia lhe possibilitaram frequentemente exibir problemas e contradições que os outros não viam porque não queriam. Entre outros exemplos, basta citar que, num epílogo ficcional (escrito em 1907) de seu "A Outra Europa", um repórter do futuro falava em Ceaucescu, o ditador comunista da Romênia, "abatido a tiros por seus próprios homens". Isso aconteceu de fato, em 1989, dois anos depois. O que é que a esquerda européia -ou brasileira- sabia então sobre o romeno?
Em entrevista exclusiva, dada por telefone, ele se estende sobre esses e outros assuntos.

Folha - Seu "Guerra Civil" é uma continuação de "A Outra Europa", onde o sr. analisa a situação em países como Portugal, Suécia, Noruega, Polônia, Hungria?
Enzensberger - Sim, mas é sobretudo uma continuação de um livro chamado "A Grande Migração", que fala desse aumento enorme do movimento de populações, do qual bons exemplos seriam a fronteira mexicana com os Estados Unidos, a fuga da Iugoslávia, o movimento de refugiados na África e assim por diante. "Guerra Civil" é uma continuação desse longo ensaio sobre as migrações e, aliás, foi publicado em inglês no mesmo volume que o outro.
Folha - Quando me referi a "Guerra Civil", eu estava falando do volume inteiro.
Enzensberger - O volume sobre a Europa é mais de relatos e reportagens do que de ensaios propriamente ditos.
Folha - Aqui ele foi chamado de "A Outra Europa -em português, o original seria algo como "Arre, Europa"), mas não se trata realmente disso, pois aqui nos habituamos a usar essa expressão para falar da Europa Oriental, enquanto os países que o sr. discute, como a Itália, dificilmente seriam uma "outra Europa".
Enzensberger - Os textos desse livro são mais narrativos e descritivos, enquanto esses novos são mais argumentativos. Eu não voltaria a fazer um trabalho de reportagem como aquele, pois sou um escritor que não gosta de repetição. Assim, se "Guerra Civil" dá alguma continuidade ao volume anterior, ele não diz respeito somente à Europa. Migração e guerra civil são fenômenos que vão além da Europa e estão presentes em praticamente todos os continentes.
Folha - Parece-me que uma das teses de seu livro, se é que se pode chamá-la assim, é a de que a Europa não é tão diferente do resto do mundo quanto seus habitantes amnésicos gostariam de imaginar.
Enzensberger - Exatamente. Eu acho que há uma falsa sensação de imunidade. Na nossa parte do mundo, algumas pessoas acham que determinadas coisas só acontecem no que era chamado, algum tempo atrás, de Terceiro Mundo. Agora, essas coisas estão cada vez mais próximas do Velho Mundo.
Folha - Não é o mesmo tipo de coisa que, antes da guerra, pensavam, digamos, os judeus alemães ao verem os "pogroms" na Rússia? Eles diziam: "esse tipo de coisa não pode acontecer em lugares civilizados como a Alemanha".
Enzensberger - É verdade. Talvez possamos antever determinadas coisas ao olhar uma cidade como Rio ou São Paulo. Podemos prever coisas que acontecerão, que já estão acontecendo nas cidades européias.
Folha - A situação pacífica destas seria uma exceção temporária à regra?
Enzensberger - Sim. Pode levar tempo, porque há uma certa tradição, naturalmente, mas as situações tendem, com o tempo, a se tornar semelhantes.
Folha - O ponto de partida de seu livro seria a guerra civil iugoslava?
Enzensberger - Não. Creio que foi mais a situação urbana em diferentes lugares. Lembro, por exemplo, os distúrbios em Brighton, Londres, no fim dos anos 70, começo dos 80. O que aconteceu em Los Angeles também foi muito importante. Conecto isso com a grande inquietação política que sobreveio depois de 1989, porque tivemos esta condição anômala de estabilidade na Europa depois da Segunda Guerra. Foi um período excepcional de "boom" econômico e estabilidade política. E, depois do fim do comunismo, parece que não será mais assim. Há uma conexão com o fim da Guerra Fria.
Folha - Como ficou a Europa Oriental depois do fim do comunismo?
Enzensberger - É difícil generalizar. As condições nunca serão uniformes no mundo inteiro. Se argumento que as condições estão se tornando parecidas, tenho que concordar quando alguém objeta que as condições são diferentes. Compare o que acontece em Moscou com, digamos, Detroit. Há similaridades e diferenças. O que acontece em seu centro urbano é parecido: muita criminalidade, violência, extremismo e terrorismo. Mas, na América, a maquinaria econômica ainda está, mais ou menos, funcionando, enquanto em Moscou não há base para ela, porque eles não tiveram seu desenvolvimento capitalista. Assim, o colapso em Moscou é diferente do que está acontecendo na América. Ainda assim, partes do quadro são idênticas.
Folha - Deixe-me fazer-lhe uma pergunta que pode parecer reacionária. Nossas idéias legais vêm da era liberal, quando o inimigo central dos cidadãos era o Estado, não o outro cidadão. Será por causa disso que a lei e o Estado não estão preparados para enfrentar a violência dos cidadãos contra os cidadãos?
Enzensberger - Isso é verdade, mas há outras razões para a fraqueza do Estado. Isso não é só uma "conspiração liberal". Sua fraqueza se deve também ao fato do que ele não pode mais controlar a economia, pois, no Estado nacional, não temos mais uma economia nacional. Temos uma economia mundial e as forças que a movem são muito mais fortes do que qualquer estado nacional.
Por exemplo, os problemas de câmbio. Um banco nacional não pode controlá-los, pois eles transcendem todas as fronteiras. Isso se aplica também às migrações: nenhum Estado pode detê-las, nenhum Estado nacional pode deter o desemprego. O Estado nacional está desamparado diante do mundo contemporâneo. Há, assim, por um lado, grupos na sociedade para os quais a lei não tem qualquer significado. Há, por outro, forças globais que também limitam o poder do Estado, forças econômicas. O coitadinho do Estado, que pode fazer?
Folha - É por isso que em muitos lugares a lealdade das pessoas passou do Estado nacional para a etnia e a religião?
Enzensberger - Creio que sim. Mas também temos uma nova forma da velha história da luta de classes que, com o crescimento e o desenvolvimento econômico, com a ampliação da classe média e o papel minguante da classe trabalhadora, muitos pensavam que desapareceria. Temos agora uma nova subclasse ("underclass"). Ela não é politicamente organizada, não tem partido, ideologia ou estandarte. Porém, está massivamente presente, ela existe, é forte, tem ligações, em algumas partes do mundo, com o fundamentalismo, com o crime organizado, com minorias étnicas etc. Sob diferentes formas, essa subclasse existe em toda parte e é naturalmente percebida como uma ameaça pelos que, em termos relativos, ainda são os ganhadores. Temos assim os elementos de uma nova guerra de classes, que não mais é política, mas se desenrola nas ruas.

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