São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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Marcos revela ironia ao falar do poder

FLAVIO CASTELLOTTI
DA CIDADE DO MÉXICO

Para Alberto Híjar, professor de estética e crítico de arte, o subcomandante Marcos e Rafael Sebastian Guillén Vicente têm um grande ponto em comum: a irreverência contra o poder.
Segundo o governo mexicano, Guillén e Marcos, líder do EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional), são a mesma pessoa.
Presidente da comissão que examinou a tese de conclusão do curso de Guillén, Híjar acha que seu ex-aluno é, com certeza, "um dos Marcos" dos zapatistas.
Ele foi professor de Guillén nos anos 70, no curso de Filosofia da Unam (Universidade Nacional Autônoma do México).
"Tivemos uma convivência mais próxima devido a afinidades ideológicas", explica.
Na época, ambos eram seguidores das idéias de Louis Althusser, filósofo francês.
Acusado ele próprio de envolvimento com a guerrilha, Híjar foi chamado a depor em fevereiro e nega qualquer participação no movimento de Chiapas.
A possibilidade de se tornar mais um preso político só foi afastada graças ao apoio imediato que recebeu de entidades internacionais e de intelectuais.
Em entrevista à Folha, explica por que considera errônea a ação do governo em Chiapas e expõe a sua visão do conflito.

Folha - Como foi exatamente sua relação com Guillén, o suposto subcomandante Marcos?
Alberto Híjar - Na época em que ele estudava filosofia, eu e Cesário Moráles éramos os grandes difusores da obra de Louis Althusser na faculdade.
Guillén fazia parte de um grupo de aproximadamente 15 alunos que admirava muito sua obra.
Eram os famosos "althusserianos". Foi uma geração brilhante, um grupo inesquecível. Assim, passamos a nos encontrar também fora da sala de aula para discutir Althusser e filosofia atual.
É necessário ressaltar que a minha relação com Guillén não se deu em separado desse grupo. Foi simplesmente uma relação casual entre professor e aluno com afinidades de pensamento.
Folha - Como você via Guillén na época? Havia alguma característica que pudesse insinuar uma atuação como guerrilheiro?
Híjar - Assim como os demais do grupo, Guillén possuia uma característica que está muito presente nos comunicados assinados pelo subcomandante Marcos: a irreverência e a ironia ao tratar de assuntos relacionados ao poder.
Penso que é consequência do movimento estudantil de 68.
Apesar de Guillén não ter participado pessoalmente do movimento, a atmosfera da Unam nos anos 70 e os próprios professores lhe propiciaram essa espécie de sarcasmo, que está presente a todo momento em seu discurso.
Folha - Você acredita então que Guillén seja de fato o subcomandante Marcos?
Híjar - Acredito que ele seja "um dos Marcos". Assim como há semelhanças formais entre os discursos de Guillén e Marcos, no conteúdo, há divergências.
Os conceitos que defende Marcos, em termos de sociedade civil, se aproximam muito do modelo social-democrata europeu.
Divergem, portanto, completamente do modelo althusseriano, que propõe um resgate de idéias marxistas-leninistas, do qual era adepto Guillén na universidade.
Folha - Na sua opinião, admitindo que Guillén seja Marcos, ele mudou muito nesses dez anos em que vive em Chiapas?
Híjar - Definitivamente, sim. Me parece claro que um homem que abandona sua vida numa cidade grande e se enfronha em comunidades indígenas, onde às vezes nem sequer se fala o espanhol, deve dar orientação distinta ao seu passado althusseriano. É uma mudança lógica.
O grupo ao qual pertencia não tinha nenhuma propensão para uma atuação prática. As próprias idéias de Althusser convidam muito mais à reflexão que à ação.
Folha - Porém, em sua tese Guillén se dedica a uma questão prática -a manipulação de livros didáticos do ensino primário mexicano.
Híjar - Sua tese mostra justamente um momento de transição. Eu fui o presidente da comissão julgadora da tese e a considero regular. Se você a analisar cuidadosamente, verá que na verdade é uma tese descritiva. Não toca fundo no problema analisado. Apenas o descreve.
A tese recebeu menção honrosa, mais pela atuação de Guillén ao longo do curso, que de fato foi brilhante, do que pela tese em si.
Folha - Havia alguma característica em Guillén que o diferenciava do restante do grupo?
Híjar - Todos eram irônicos e sarcásticos. De Guillén tenho uma recordação em especial. Ele gostava muito de fazer um trocadilho com uma frase de Fidel Castro.
Fidel havia dito: "Ontem éramos apenas um punhado de homens, hoje somos um povo em luta pela liberdade". Guillén invertia a frase e dizia: "Ontem éramos um povo em luta pela liberdade, hoje somos apenas um punhado de homens". Esse trocadilho nunca me saiu da cabeça.
Folha - Você foi acusado em fevereiro de envolvimento com a guerrilha. Por quê?
Híjar - Trata-se de um homem chamado Salvador Moráles, que fez várias acusações inverossímeis contra intelectuais e pessoas com certo engajamento social na região. Ele diz ser um ex-membro do EZLN.
O mais absurdo da história é que ninguém o conhece e desde então ele está desaparecido.
A mim, acusou de ter ido a Nicarágua na época do sandinismo para colaborar com Lenin Serna (líder sandinista) no treinamento de zapatistas.
Folha - Como você vê a atuação do governo em Chiapas?
Híjar - O governo está fazendo o possível para destruir a base social do EZLN. O Exército invade comunidades e promove ações de intimidação contra os índios. Por exemplo: soltam o gado, violam mulheres, matam uns dois ou três e fingem que está tudo bem.
Isso não sou eu que estou denunciando. Várias ONGs (organizações não-governamentais) já fizeram essas denúncias.
Esse tipo de atitude gera pânico e divide a população local quanto aos zapatistas, pois afinal o Exército só está lá devido ao EZLN.
É um processo de transferência de culpa.
Folha - As causas do conflito em Chiapas são mais sociais ou religiosas?
Híjar - Há causas de todas as classes. Primeiro devemos analisar as raízes históricas. Desde a conquista espanhola, vive-se um processo constante de desapropriação das terras e da cultura indígena.
Porém o principal fator da atual situação de Chiapas é econômico.
Um analista econômico da região disse que em Chiapas há uma mais-valia muito complexa, que vai além do conceito de excedente de capital gerado pelo trabalho.
Trata-se de uma mais-valia extraída de toda uma conjuntura sócio-econômica, resultado de séculos de exploração.
Há inúmeros conchavos entre setores dominantes da sociedade para não abrir mão dessa mais-valia. Os últimos governadores do PRI são uma síntese desse poder antiindígena que ali prevalece.
Daí se percebe que o conflito também tem suas causas políticas, pois prevê a corrupção e a participação direta do PRI (Partido Revolucionário Institucional, no poder há 66 anos) no esquema.
Folha - E a questão religiosa?
Híjar - Serve para piorar a situação. O conflito ganhou ares de modernidade com a penetração de igrejas protestantes, que se chocam com o catolicismo deformado da população e brigam pelo tráfico de bebidas alcoólicas na região.

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