São Paulo, domingo, 23 de abril de 1995
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A dama de branco

MARIO VITOR SANTOS

Eu vi a dama de branco. Durante um período, todas as sextas-feiras, nove da noite, saíamos de casa, mortos de medo. Íamos os três subindo a rua, margeando o rio, por uns 300 metros, se tanto. Acho que só conseguia caminhar até perto do casarão porque me agarrava às mãos de minha irmã e de Maria Luíza. Mas, de tanto que suavam, minhas mãos escapavam. Maria Luíza me fascinava pelos relatos que fazia enquanto trabalhava. Sabia todas as histórias da dama de branco, de como a imagem aparecia nas estradas para guiar os cavaleiros, ou sobre seu costume de surgir à noite nos arredores dos velhos casarões. Como Maria Luíza conhecia também algumas palavras em inglês, eu tinha a impressão de que aquele incrível saber comunicava autenticidade às histórias sobre a dama. Minha crença era absoluta. Também por isso aceitei, na primeira vez, encarar o medo e ir junto com as duas para ver a mansão. A casa da dama era enorme. Tinha muro bem alto, de pedras, erguido em curva ao longo da rua e só interrompido pela alameda que um dia deve ter dado acesso aos carros. Lá em cima, um parapeito de pequenas colunas brancas contrastava com o negro que a hera colada ao muro adquiria àquela hora. Para presenciar a aparição, havia muito mais gente além de nós. Nas semanas seguintes, pude constatar que a notícia do fenômeno estava correndo. A platéia era cada vez mais numerosa. Vinham famílias inteiras, com um jeito que variava do furtivo -pois o padre, no caso de uns, ficaria muito zangado se viesse a saber que fiéis estavam atrás de fantasmas- ao puro terror. A maioria ficava ali, em volta, na penumbra, esperando alguma coisa acontecer. Sempre algum garoto mais abusado subia antes no muro para espiar. Dezenas de pessoas logo rodeavam pelos outros terrenos mais altos. No escuro, à distância, mal dava para ver o contorno da mansão vazia, com as portas e janelas fechadas. Nos muros, todo mundo tentava distinguir alguma imagem sob a lua cheia. O silêncio não durava. Uma saraivada de gritos, gozadores e nervosos, vinha de todos os lados, no que, antes de indicar coragem, mais parecia ser uma tentativa de ocultar o medo sob um manto de escárnio. A dama efetivamente surgia ao longe, com seu véu diáfano e reluzente, pairando inalcançável. Muito pouco se podia distinguir do corpo. Parecia oco. A visão do vulto era o suficiente para que todos nos projetássemos o mais rápido para longe dali, tomados pelo terror, com as orelhas geladas, o coração disparado, sob uma gritaria ensurdecedora. O som aí mais parecia o de um ataque apache, não o de uma horda de observadores de fantasmas em fuga. Nas visitas aos casarões, a dama de branco busca, como conta Luís da Câmara Cascudo, no "Dicionário do Folclore Brasileiro", aliviar-se do tédio. Vê-la é como obter uma graça, indica sorte. Em meio à morbidez de sua aparição na noite escura, o vôo alvo trazia também um sentido de mistério e descoberta. Não sei mais se minha memória da dama se deve a relatos de terceiros, ou à imaginação, ou ao fato de ter mesmo visto a assombração. Lembro apenas de que ela se instalou em mim ainda antes de que o bairro, a cidade e o país fossem inundados pelo sucesso das telenovelas da TV Globo -que agora faz 30 anos. Algumas delas até chegaram a abordar o tema e se renderam ao magnetismo da dama de branco.

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