São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 1995
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Entre a ética e a corrupção

EDUARDO RIBEIRO CAPOBIANCO

O Congresso Nacional deverá decidir nesta quarta-feira (26 de abril) uma questão crucial para a moralização das relações entre o Estado e as empreiteiras. Serão apreciados os vetos aplicados em junho do ano passado pelo então presidente Itamar Franco ao projeto de lei que se converteu na Lei 8.883, a qual deu nova redação à Lei de Licitação e Contratos (Lei 8.666).
O que Itamar Franco havia vetado era a exigência de que uma empresa, para se habilitar a uma concorrência pública, tivesse que apresentar atestado comprovando haver realizado 50% de obra ou serviço semelhante. O veto foi correto porque a exigência não passava de um retrocesso. Em 1993, a Lei de Licitações e Contratos já havia sido sancionada sem a obrigatoriedade desses atestados.
Os que acompanharam a história dos anos recentes sabem quão daninhos foram esses atestados em nome da empresa, denominados técnico-operacionais. O administrador público desonesto que desejasse manipular o resultado de uma concorrência exigia que as candidatas apresentassem atestados técnico-operacionais de realização de determinadas obras ou serviços. Obviamente, eram listadas atividades que apenas um reduzidíssimo grupo de empreiteiras tivesse executado.
Ao limitar o número de participantes de uma concorrência pública, esses administradores inescrupulosos adquiriam condição de se compor com essas empresas, acertando previamente os resultados da licitação.
Esse estratagema acabou gerando uma concentração econômica extremamente perversa no mercado de obras públicas. Em 1993, apenas sete entre as 150 maiores empreiteiras do país dominavam nada menos que 70% desse mercado. Essas empresas haviam adquirido tamanho porte que ganharam o apelido de megaempreiteiras.
A CPI do Orçamento demonstrou que a ação de algumas megaempreiteiras não foi perversa apenas para o mercado de obras públicas. Essas empresas também passaram a ter uma fonte influência sobre parte dos políticos, conseguindo manipular o Orçamento e ganhando obras em troca de favores prestados nas campanhas.
A corrupção e o superfaturamento eram o reverso da moeda que dava sustentação àqueles políticos inescrupulosos, comprometendo o próprio desenvolvimento do país.
O Estado chegou a perder a racionalidade na condução das políticas de governo. Os investimentos em infra-estrutura, construção de hospitais, escolas, presídios passaram a ser decididos por esta ou aquela empresa, que navegava pelo mar de lama formado a partir dos atestados.
O então presidente Itamar Franco agiu com extrema ética e correção ao vetar a exigência dos atestados técnico-operacionais. E, como está previsto na legislação, o Congresso vai agora se reunir para manter ou derrubar os vetos. Os parlamentares que desejam a volta desses atestados argumentam que o Estado estaria mais protegido se entregasse determinadas obras públicas apenas às empresas que demonstrarem experiência prévia na execução de obra ou serviço semelhante. Nada mais falso.
O Estado já está suficientemente protegido pela Lei de Licitações e Contratos. Ela prevê que a empresa ganhadora de uma concorrência apresente uma garantia financeira de 5% do valor da obra. No caso de descumprimento do contrato, estão previstas severas punições, como rescisão contratual, declaração de inidoneidade e bloqueio financeiro. E como as obras são de longo ciclo de duração, o Estado pode interromper imediatamente o pagamento, caso uma etapa não seja realizada a contento. Não há prejuízo, porque o governo só paga após conferir a execução de cada pedaço de uma obra.
Hoje, diante do rigor da lei, a empresa que entrar como aventureira numa concorrência pública e ganhá-la será rapidamente expelida do mercado caso descumpra o contrato, sem maiores prejuízos para o Estado. E mais: o risco de abrir o mercado a alguns aventureiros é sobejamente compensado pelo que já se obteve com o fim da corrupção e com o barateamento dos preços nas obras públicas desde a edição da Lei de Licitações e Contratos.
Por esses motivos, fica claro que o argumento de que o atestado seria necessário para defender o Estado não passa de um sofisma esgrimido por empresas e políticos que querem a volta dos privilégios descabidos de algumas megaempreiteiras.
Além disso, se a exigência de execução prévia de 50% de obra ou serviço semelhante estivesse em vigor, estaríamos mergulhados na Idade da Pedra em termos de desenvolvimento econômico e tecnológico. Só uma megaempreiteira que tivesse executado metade de uma hidrelétrica do porte de uma Itaipu seria habilitada a construir outra hidrelétrica semelhante.
As grandes obras ficariam circunscritas às megaempreiteiras. Pequenas e médias empresas, muitas vezes tecnologicamente mais modernas e gerencialmente mais enxutas, estariam fora dessas concorrências, mesmo que pudessem oferecer o mesmo serviço com melhor qualidade e por um preço mais baixo.
A possibilidade da mais ampla competição impulsiona o mundo rumo à modernidade. Se pequenas empresas, como uma vez foi a Microsoft, tivessem sido impedidas de competir livremente, o mundo ainda estaria convivendo com o anacronismo das gigantes desse mercado e provavelmente pagando dez vezes mais pelos computadores, que não seriam tão modernos como os de hoje.
Devido a fatos como esse, a exigência de um atestado técnico-operacional incentiva a formação de cartéis. A livre concorrência é o melhor remédio contra a cartelização. Foi o que ocorreu no clássico caso da concorrência para a construção da hidrelétrica de Segredo. Contra as megaempreiteiras de plantão, formou-se um consórcio de construtoras de médio porte. Somando suas potencialidades e contratando profissionais experientes, essas construtoras conseguiram vencer a concorrência oferecendo um preço significativamente menor.
Assim, os congressistas estão agora diante de duas opções: ou derrubam o veto presidencial e ressuscitam o jurássico atestado técnico-operacional, abrindo novamente as portas do mercado de obras públicas à cartelização, à corrupção e ao superfaturamento; ou mantêm o veto, permitindo o prosseguimento da abertura de mercado e da livre concorrência - as armas mais eficazes contra a corrupção no setor de obras públicas e a favor da verdadeira defesa dos interesses do Estado.
Se optarem por adotar essa última posição, sem dúvida a imagem do novo Congresso que tomou posse no mês passado sairá extremamente fortalecida.

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