São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 1995
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Bernardet defende a crítica em mutação

AMIR LABAKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Jean-Claude Bernardet, há três décadas o mais inquieto crítico de cinema brasileiro, lança no dia 2 de maio, em pré-estréia no Anexo do Espaço Banco Nacional (r. Augusta, 1.470, tel. 011/288-6780, região central), seu primeiro filme como diretor, "São Paulo, Sinfonia e Cacofonia".
É um cinepoema dedicado à cidade sob a forma de um filme de montagem, que articula cenas rodadas na metrópole, desde a era muda até o ano passado.
Belga por acaso, francês de origem, brasileiro por escolha, Bernardet desenvolveu uma trajetória intelectual ímpar, de companheiro de viagem dos cinemanovistas a padrinho da recente primavera do curta, de fino exegeta do cinema marginal a irônico crítico do cinema de autor.
Escreveu obras clássicas ("Brasil em Tempo de Cinema", "Cinema Brasileiro: Propostas para uma História"), assinou roteiros ("O Caso dos Irmãos Naves", 1967), escreveu romances ("Aquele Rapaz", "Os Histéricos"), além de formar legiões de cineastas em cursos na ECA-USP.
Em seu apartamento no centro de São Paulo, Bernardet falou por mais de quatro horas à Folha sobre sua carreira. Ao resumir seu método crítico, implora: "Não pense hoje o que pensou ontem".
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Folha - Você continua sentando "sempre nas primeiras fileiras" pelo "prazer de ser esmagado por uma imagem cinematográfica"?
Jean-Claude Bernardet - Não. Agora tenho problemas de vista. Outro dia fui ver "Pulp Fiction" e durante os trailers sentei mais perto, mas quando começou o filme tive de recuar (risos).
Folha - Você nasceu no sul da Bélgica em 2 de agosto de 1936. Parte da sua infância e da sua adolescência estão ficcionalizados no livro "Aquele Rapaz"...
Bernardet - Também não é para pegar "Aquele Rapaz" ao pé da letra. E autobiográfico, mas tem algumas fantasias. Nunca morei na Bélgica. Meu pai foi fazer um estágio e o fim da gravidez de minha mãe se deu lá. Fiquei dois ou três meses e voltamos para Paris. Em 1939 ou 1940, entra a guerra e os alemães fizeram uma proposta para meu pai passar para eles a produção de sua fábrica de equipamentos de precisão (manômetros etc). Ele não passou e fugiu.
Folha - Como foi isso?
Bernardet - Meu pai foi para a Resistência. Depois da guerra se tornou presidente de um tribunal que julgava os colaboracionistas. Minha mãe o acusou de ter sido colaboracionista, quando na verdade ela que o fora. No tribunal ele teve ganho de causa, mas teve os bens congelados por um tempo.
Isso, ligado ao divórcio, ao aparecimento de uma nova mulher e ao desejo de ir para um lugar em que as pessoas não nos conhecessem de forma que os filhos pudessem ser considerados filhos da segunda mulher, levou-o a imigrar.
Folha - Como nasceu sua relação com o cinema?
Bernardet - A descoberta dos filmes para mim foi um terror. Lembro vagamente, mas foi várias vezes contado pela família, que ao ir ver um "western" qualquer em Paris eu urrei, em absoluto terror, e tiveram de me tirar da sala. O segundo momento de terror foi no navio que nos trouxe ao Brasil. Um dos filmes projetados foi "Roma, Cidade Aberta", achei terrível e fiquei sem dormir.
Folha - Sua aproximação com o cinema se deu após a saída de casa e a ligação com o cineclube Dom Vital?
Bernardet - Eu trabalhava já antes dos 21 anos na Difusão Européia do Livro e na Livraria Francesa. Fui com um amigo a um cineclube e era o Dom Vital. Às terças havia uma minipalestra sobre um filme em circuito. Alguém propôs, acho que o Gustavo Dahl, que eu fizesse uma também.
Ia passar um filme francês, o "Gervaise" (1955), do René Clement. Fiz uma exposição muito bem-sucedida. A repercussão me fixou ao cinema. O Rudá de Andrade me convidou, então, para trabalhar na biblioteca da Cinemateca Brasileira.
Folha - Você conheceu o Paulo Emílio Salles Gomes numa palestra para cineclubistas na Cinemateca. Como foi o encontro?
Bernardet - Me marcou muito uma frase da palestra: "O cinema não existe, só existem os filmes". Isso dava uma liberdade grande e afastava de qualquer dogma.
Folha - Paulo Emílio foi a grande referência para você?
Bernardet - Foi. Do ponto de vista intelectual e também afetivo. Paulo Emílio me valorizou tremendamente. Depois do curso, ele foi viajar e montou um grupo para substituí-lo na coluna semanal do "Suplemento Literário" de "O Estado de S.Paulo". Ele me convidou e eu disse não. Ele simplesmente decidiu que sim. Eu me transformei com Paulo Emílio.
Folha - Sua relação com Glauber evoluiu da amizade inicial ao violento afastamento posterior, com ele te chamando até de "canalha" e "reacionário". Por que se deu essa mudança?
Bernardet - Há uma fase muito próxima, na virada 1950-1960. O corte se dá com a publicação do "Brasil em Tempo de Cinema".
Folha - Por quê?
Bernardet - Ele me disse que o Cinema Novo era um movimento popular e não de classe média. Ele abominou que eu tivesse escrito isso. Outra coisa é que o livro não aderia ao Cinema Novo, ele dizia que eu fazia o jogo da direita.
Folha - E depois?
Bernardet - Havia muitas posições do Glauber de que eu não gostava. Em 1974 fui a Cannes. O Glauber estava encalacrado com o "História do Brazyl" (1974), que havia começado em Cuba e levado o material a Roma. Tinha um texto que era um horror e Glauber sabia disso. Ele me pediu para refazer o texto. Fiquei de responder de Paris e mandei um telegrama negativo. Ele considerou uma ofensa.
Folha - Foi assim até a morte dele?
Bernardet - Não. Mais tarde, não lembro quando, houve uma reformulação na Embrafilme, ia sair o diretor cultural, e ele me chamou para para dizer que eu seria o candidato dele. Era só falar com não sei qual general e eu seria o escolhido. Glauber, que não tinha onde morar, naquele dia estava num chiquíssimo apartamento decorado de branco.
Ele falou cinco horas sem parar. Ele cortava tudo que eu dizia. Foi nosso último encontro. Achei que havia atingido um nível de delírio tal que não havia possibilidade de relacionamento afetivo, profissional ou de uma discussão.
Folha - Você hoje classificaria o Glauber como o maior cineasta brasileiro?
Bernardet - Detesto essas classificações. Dependendo do enfoque, diria Glauber, poderia também dizer Nélson Pereira e até Walter Lima Jr., cujo trabalho eu estimo demais. No nível afetivo eu te diria que "Terra em Transe" é o maior filme brasileiro.

LEIA MAIS sobre Jean-Claude Bernardet à pág. 5-4

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