São Paulo, quarta-feira, 26 de abril de 1995
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As diversas línguas faladas no Brasil

PIERRE SANÉ

Na ocasião de minha participação no debate sobre direitos humanos promovido recentemente pela Folha (4/4), fui solicitado, repetidas vezes, a fazer um balanço de minha visita ao Brasil.
Hoje, de volta a Londres e com as memórias da viagem ainda frescas na minha memória, transmito minhas impressões do que considero ter sido uma viagem momentosa.
Em primeiro lugar, é preciso assinalar que a visita constituiu apenas um elemento do trabalho contínuo que a Anistia Internacional vem realizando no Brasil nos últimos 20 anos.
Minha viagem de duas semanas cobriu grandes trechos do território brasileiro, de dimensões continentais, e possibilitou um contato com os mais diversos setores da sociedade.
Fui recebido por autoridades federais, incluindo o presidente Fernando Henrique Cardoso, e estaduais, como os governadores do Rio Grande do Sul, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal.
Tive encontros com ativistas de direitos humanos, advogados, padres, acadêmicos, e também vítimas de abusos de direitos humanos, e homens e mulheres comuns da periferia das principais cidades do país.
Ao encontrar todas estas pessoas, ouvi línguas diferentes, e não me refiro aqui ao excelente nível de inglês e francês de diversas autoridades do governo, incluso o presidente Cardoso, nem ao belo português brasileiro falado com diferentes sotaques nas diversas regiões do país. Refiro-me a algo mais profundo do que isso.
As autoridades federais e estaduais, praticamente sem exceção alguma, falavam a língua dos direitos. Senti-me encorajado pelo compromisso pessoal com os direitos humanos expresso pelo presidente Fernando Henrique Cardoso e pelos governadores Antônio Britto, Miguel Arraes, Marcello Alencar, Mário Covas e Cristovam Buarque, e pelo franco reconhecimento de todos no que diz respeito aos sérios problemas de direitos humanos existentes no Brasil.
Mas quando me reuni com pessoas de lugares como Acari e Vigário Geral, ouvi uma língua diferente. Era a língua da guerra e paz. Fiquei surpreso, porque pelo que eu sabia, o Brasil não é um país em estado de guerra. Tem um problema grave de segurança pública, que precisa ser tratado dentro dos limites da lei. Mas isto não é a mesma coisa que guerra.
Dizem que se trata de uma guerra contra os criminosos. Mas, como acontece em qualquer guerra, quem sofre mais são as pessoas inocentes presas entre as partes em guerra.
E nesta chamada guerra, as vítimas inocentes são também os membros mais pobres e mais vulneráveis da sociedade brasileira: as crianças de rua, os moradores das favelas, as mulheres, como as mães de Acari e os parentes das vítimas do Vigário Geral.
Nas vozes das vítimas dos crimes de direitos humanos, ouvi um senso profundo de injustiça: "Estou sendo tratado como criminoso quando não fiz nada de errado", escreveu Wagner dos Santos, uma testemunha-chave do massacre da Candelária, numa carta comovente a seu advogado.
Na voz dos familiares dos "desaparecidos" durante os anos do governo militar, ouvi a língua da dignidade humana, expressando seu pedido de conhecer o destino de seus entes queridos.
Nas vozes dos ativistas dos direitos humanos e de corajosos promotores públicos, ouvi a língua da determinação em não deixar que a impunidade prevaleça sobre a Justiça.
Nas vozes dos membros da seção brasileira da Anistia Internacional, ouvi a língua da educação pelos direitos humanos e da solidariedade internacional com as vítimas de violações dos direitos humanos em outros países.
Não tenho motivos para duvidar da sinceridade da preocupação das autoridades federais e estaduais com os direitos humanos. Mas a impressão avassaladora que a visita ao Brasil me deixou é que, no que diz respeito a direitos humanos, a distância que existe entre os gabinetes de políticos, em Brasília, Rio e São Paulo, e lugares como Sapopemba, Acari e Vigário Geral, é maior do que a distância geográfica entre a capital federal e as favelas das maiores cidades do país.
É preciso, urgentemente, construir uma ponte sobre esse abismo. Um Plano Nacional de Ação pelos Direitos Humanos, elaborado com a participação das autoridades federais e estaduais e das organizações representativas da sociedade civil, poderia contribuir para construir esta ponte, reunindo todas essas vozes distintas num único objetivo comum.
Espero, sinceramente, que o governo brasileiro tenha a coragem política de tomar a dianteira nesta iniciativa.

Tradução de Clara Allain

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