São Paulo, quinta-feira, 27 de abril de 1995
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Sub

OTAVIO FRIAS FILHO

Por que o líder da insurreição camponesa no México se chama subcomandante Marcos, por que a ressalva, redutora e gongórica, da partícula "sub"? Ninguém sabe ao certo quem ele é, chegam a dizer que há vários subs.
Um deles, talvez ele próprio, escreveu numa proclamação recente: "Para que nos vissem, cobrimos nossos rostos; para que nos dessem um nome, negamos nosso nome". Seu ancestral, sem mencionar Zapata e o próprio Zorro, é o comandante Zero.
Zero era um igualmente enigmático líder sandinista que ajudou a derrubar Somoza, em 79, na Nicarágua. Ao lado dos vietcongs, fez parte da última geração de guerrilheiros influenciada, através dos autores marxistas, pelo racionalismo europeu.
Depois deles, os profetas da insurreição já não se consideram intérpretes da "ciência" de Marx, Lênin ou Mao, mas porta-vozes de Maomé ou dos astecas, quando não, sem falsa modéstia, de Deus mesmo. Seu ponto de miragem, aliás, mudou do futuro para o passado.
Em face da expansão avassaladora da economia de mercado, as forças resistentes são compelidas a uma atitude meramente defensiva. A doutrina revolucionária desmanchou em mil pedaços e os fragmentos passam a ser reutilizados em segunda mão, à direita e à esquerda, na verdade a esmo.
Ora predomina o aspecto religioso, como no Islã, ora o aspecto militar, como na América Latina, ou o étnico, como nos EUA, mas em geral a contestação incorpora elementos tradicionais: sentimento nacional, valores familiares, sexualidade restrita.
É como se depois de uma era de ampliação visionária, futurista, como foi a era soviética, sobreviesse uma era "revisionária", quando tudo se dobra sobre seu próprio passado. Esse é o degrau entre Zero e Sub, conforme sugere a biografia do subcomandante Marcos.
Estudante de filosofia nos anos 70, o homem hoje apontado como Marcos escreveu uma tese sobre o marxista francês Althusser. O texto se redige sozinho, os clichês pendurados um no outro, naquela prosa mecânica em que "as crises são uma concentração das contradições capitalistas" etc.
Vinte anos depois, esse misterioso personagem, de quem só conhecemos de fato o estilo, mudou. Seus comunicados recentes são vivos, extravagantes, sentimentais. O tom geral é de um esquerdismo barroco, mas ele usa a Internet e fala em ecologia.
Já o andamento passou a ser bíblico. Diz ele: "E falamos e lhes dissemos o que queríamos e não entendiam muito, e lhes repetíamos que queríamos democracia, liberdade e justiça (...) e eles revisavam suas anotações de neoliberalismo e não encontravam essas palavras".
Na subideologia (ou subliteratura) do subcomandante Marcos há matéria para todos os gostos, de Guevara a Rambo. Ele é pop, justamente ele que detesta os EUA e chama os americanos, com poesia meio indígena, meio oriental, de "império das estrelas opacas".
De Clinton a Marcos, passando por FHC, todos são vítimas da falta de paradigma, de ortodoxia. Os governantes do Irã cortaram o mal pela raiz: arrancaram as antenas parabólicas. É ver por quanto tempo continuarão arrancando, em vez de serem arrancados.

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