São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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JORDAN

MELCHIADES FILHO
DO ENVIADO ESPECIAL A CHICAGO

Ninguém sabe ao certo o que move o tricampeão da NBA (91, 92 e 93).
Michael Jordan, 32, continua fechado ao mundo. Dentro da quadra, é uma estrela solitária.
Antes de cada jogo, segue um ritual.
Faz sempre a mesma refeição básica: bife com batatas (fritas, cozidas ou assadas).
"Não gosto de variar. Com esse prato, sei que a proteína vai estar lá na hora em que precisar. As pessoas dizem que me alimento como um passarinho. Estão certas. Como só o suficiente para voar. As aves que comem muito, como galinhas e perus, acabam devoradas", escreveu em sua autobiografia.
Jordan come sozinho.
Para o caminho de casa ao ginásio, dispensa o motorista.
É conhecido por dirigir rápido e usar o acostamento da Kennedy Expressway, estrada que corta Chicago no sentido longitudinal.
No carro, leva bolas e ingressos. Segundo Sam Smith, jornalista do "Chicago Tribune", são presentes usados para driblar guardas de trânsito mais rigorosos.
Jordan tem vaga própria no estacionamento do United Center, ginásio de US$ 175 milhões, com capacidade para quase 27 mil pessoas, inaugurado nesta temporada.
O carro fica separado dos demais. "Roubavam as placas. Dia sim, dia não", contou certa vez.
Uma vez no ginásio, isola-se dos outros atletas.
Além de chegar mais cedo e bater bola sem companhia, desrespeita a fila para encontrar o preparador físico que enfaixa seus tornozelos.
Os Bulls se reúnem com o técnico Phil Jackson, nos vestiários, 45 minutos antes da partida. Jordan chega pontualmente um minuto antes da preleção.
Sem puxar conversa, veste o short de lycra azul de seu time dos tempos de universidade. "Para dar sorte." Calça um Nike 0 km. "Para me sentir confortável." Diferentemente dos companheiros, laceia os tênis pessoalmente. "Para passar o tempo e diminuir a ansiedade."
Na quadra, senta-se separado dos colegas.
Nem toda essa distância é responsabilidade de Jordan. A própria gênese da NBA esfria as relações jogador-equipe.
Os times não são clubes. Não têm sócios, nem complexos para a prática esportiva popular.
São franquias, concedidas a peso de ouro pelos cartolas da liga a empresários experientes e multimilionários. Os Bulls, por exemplo, valem US$ 150 milhões.
Não se poderia esperar do astro que tratasse o Chicago como se fosse o Flamengo.
Sua relação com o time em nada difere das ligações com McDonald's, Nike ou Gatorade.
Os Bulls são um patrocinador a mais -respondem, aliás, por apenas 12% dos rendimentos do atleta (US$ 34 milhões anuais).
Não têm a menor idéia do que se passa na vida de seu bem mais precioso.
Em casa, num subúrbio abastado ao norte de Chicago, Jordan possui duas linhas de telefone.
Uma, permanentemente ligada à secretária eletrônica no escritório, serve aos negócios.
A outra, usada pelos familiares e amigos próximos, tem extensões pela área social e íntima da casa.
A direção do Chicago só tem o primeiro número.
"Vejo-os diariamente, oito meses por ano. Não tenho obrigação de atender suas chamadas. Não gosto do barulho do telefone. Se for importante, acabarei sabendo", afirmou Jordan a Bob Greene, autor do livro "Hang Time".
A agenda do atleta com o clube é simples. Aparece para treinar e jogar. Só. Festas e eventos sociais, apenas mediante gordo cachê.
Mesmo nos treinos, recebe tratamento especial. No último dia 21, por exemplo, foi poupado dos exercícios de musculação.
"É normal. Ele tem autonomia para cuidar de seu condicionamento físico", diz à Folha Lori Flores, relações públicas dos Bulls.
O ala-pivô Horace Grant, tricampeão pelos Bulls e hoje no Orlando Magic, tem outra explicação: "Ele não gosta de dar o braço a torcer. É dos que consegue levantar menos peso. Por causa de sua mania de competição, prefere fazer as sessões sozinho".
Jordan também pôde abandonar mais cedo o treino daquela sexta-feira, dia em que raspa -pessoalmente- a cabeça.
O preparador físico Chip Schaefer confirma a mordomia. "Apenas ajudo quando ele me pede."
E admite pouco saber da saúde do atleta. "Não fazemos acompanhamento dele. Só sei quanto mede, quanto pesa..."
Jordan até modificou a estrutura do corpo sem que os patrões soubessem.
No verão de 86, contratou um nutricionista e um fisicultor. Para resistir às trombadas nos garrafões, ganhou 13 kg de massa muscular no torso, ombros e braços.
Os Bulls só conheceram o novo Super-Jordan na reapresentação do time para a temporada seguinte.
Também os contatos com a mídia fogem ao controle do Chicago.
"Não monitoramos sua agenda. Quem marca entrevistas é seu staff pessoal. Pelo que sei, até Tom Brokaw (âncora de um dos três principais telejornais dos EUA) está na fila", conta o diretor de imprensa, Tim Hallam.
A Folha conversou com Jordan pela primeira vez no dia 20, nos vestiários do United Center.
O Bulls haviam acabado de derrotar o Detroit Pistons.
Folha - Você já disputou 17 jogos desde sua reestréia. Está mais claro agora por que voltou às quadras?
Jordan - Voltei por amor. Mas também com um objetivo claro, o de conquistar o quarto campeonato.
Folha - Essas seis semanas o deixaram mais feliz? Ou já foram suficientes para concluir que o basquete é uma profissão cansativa?
Jordan - Não. Minha profissão está fora das quadras, quando preciso trabalhar para os patrocinadores, corresponder às expectativas dos fãs e me relacionar com vocês da mídia. Na quadra é divertido.
Folha - Ao abandonar o esporte, em 93, você disse querer se livrar do assédio dos fãs e da imprensa. Mas a volta não atraiu ainda mais atenção sobre sua vida?
Jordan - Isso é curioso. Não importava o que estivesse fazendo, sabia que era observado o tempo todo.
Se estava num restaurante, fazendo compras ou na janela de um hotel, estavam me olhando. O beisebol em nada mudou isso.
O jogo de basquete, por sua vez, funciona como um alívio.
Folha - Como assim?
Jordan - A quadra é uma espécie de abrigo. Os únicos momentos em que me sinto à vontade, sem me preocupar em errar, com o que falar e em como agir, são os que passo sozinho com minha família ou na quadra de basquete.
Folha - Você se destacou já na primeira temporada profissional, em 85, pela capacidade atlética de correr, saltar, até voar... Qual o segredo para manter a forma?
Jordan - (ri) Como mantenho a forma? Vou ao McDonald's, bebo Gatorade (2 de seus 11 patrocinadores), essas coisas...
Pela imagem pública, Jordan sacrifica sentimentos. E age, admite, de maneira insincera.
"Gosto de parecer uma pessoa boa. Mas percebi que, do ponto de vista mercadológico, não tenho outra opção. Não posso dizer o que me vem à cabeça", lamentou ao jornal "Chicago Tribune".
"Dos meus dias, 10% estou muito mal-humorado. Mas não posso me dar ao luxo de explodir. Seria difícil explicar depois."
Talvez por isso Jordan goste tanto de Charles Barkley, o ala do Phoenix Suns famoso pela truculência verbal.
"Eu sou o mocinho; ele, o bandido. Às vezes, gostaria de inverter os papéis."
Veja, em quatro exemplos, o zelo de Jordan com sua imagem:
1) Um dia após o nascimento de seu segundo filho, em 90, Jordan enfrentou o Detroit em Chicago.
Pouco antes do jogo, foi homenageado por companheiros, jornalistas e funcionários dos Bulls.
Um dos diretores entregou-lhe charutos. Jordan "travou". Com medo de ser associado à indústria do tabaco, impopular nos EUA, deixou a festa.
2) A NBA abre os vestiários à imprensa dez minutos após os jogos. Os atletas são entrevistados saindo do banho, às vezes sem roupa.
Jordan aparece impecavelmente vestido para as TVs.
Também cuida para que o público jamais veja seus pés, as unhas escurecidas e quebradas pelos repetidos pisões em quadra.
Para evitar registros comprometedores, é proibido o acesso de fotógrafos ao vestiário do Chicago.
3) Jordan jamais recusa um autógrafo. Uma vez furado o cerco, ele se conforma e assina.
Mas criou uma tática. Entre ônibus e hotéis, aeroportos e ginásios, vive com fones de ouvido.
Nada toca em seu walkman, apurou a Folha. Trata-se de um expediente para não ouvir a maioria dos pedidos dos fãs.
4) Jordan não fala palavrões em público, embora abuse deles em quadra, longe das câmeras.
Em 1990, nas finais contra o Los Angeles Lakers, o novato Scott Williams ouviu um "cala a boca" quando xingava o adversário. "Tem microfones por perto!"

Jordan guarda seus momentos de "prima donna" para os bastidores.
Segundo ele, técnicos são inúteis. Só poupa Dean Smith, que o comandou na universidade na Carolina do Norte.
Doug Collins, seu terceiro treinador no Chicago, foi o mais bombardeado. O craque chamava-o de chorão na frente dos demais atletas.
Phil Jackson é preservado em público. Talvez por ter estado com a equipe nos três títulos.
Mas Jordan já qualificou de "infantis" os métodos do chefe, famoso por experimentar "estímulos psicológicos".
Diz também não dar "a mínima" para instruções táticas. "Em quadra, sei o que devo fazer."
Nas visitas aos vestiários dos Bulls, a Folha verificou que as palestras de Jackson não têm lá muito impacto.
Antes das partidas, os atletas recebem informações e estatísticas sobre o adversário. O objetivo é usá-las para definir a estratégia do jogo com o treinador.
Os companheiros não escapam à impaciência do ídolo.
Jordan já exigiu contratações ao dono dos Bulls, Jerry Reinsdorf.
Principalmente no final da década de 80, quando a equipe "morria na praia", ano a ano desclassificada pelos Pistons.
Jordan propôs a troca de Horace Grant por um "jogador de mais fibra", pediu a cabeça do armador BJ Armstrong ("treme na hora decisiva") e fritou novatos.
Em 1990, durante a campanha do primeiro título, perdeu a cabeça. Inconformado com a lentidão de Will Perdue, derrubou o pivô com um soco no treino.
Desde então, os exercícios com bola no Berto Center (subúrbio norte de Chicago) são fechados à imprensa. O técnico Jackson ordenou a instalação de cortinas nas janelas do ginásio.
Nesta reentrada na NBA, Jordan está pegando "mais leve".
Sem o astro, os Bulls cumpriam campanha mediana -34 vitórias e 31 derrotas, aproveitamento de 52%. Com ele, conquistaram 13 vitórias em 17 jogos -76%
Até março, as bolsas de apostas em Las Vegas ofereciam US$ 40 para cada US$ 1 apostado no título do Chicago. Hoje, prometem somente US$ 5.

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