São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Filósofo' triunfa com 'orgia no futebol'

RODRIGO BERTOLOTTO
DA REPORTAGEM LOCAL

'Filósofo' triunfa com 'orgia no futebol'
Jorge Valdano é, no mínimo, um técnico diferente.
Chamado de "El filósofo", rotulado de barroco por seu estilo rebuscado de falar sobre futebol, Valdano comanda o Real Madrid.
A equipe merengue, como é conhecido o Real por causa do seu uniforme branco, está na liderança do Campeonato Espanhol 94/95.
O Real tem folgados sete pontos de vantagem (acumula 46) sobre o La Coruña, segundo colocado, e oito sobre o Barcelona, o terceiro.
Hoje, o Real vai a Tenerife enfrentar a equipe local, no comando da qual Valdano também viveu bons momentos de sua carreira de técnico.
Campeão mundial com a Argentina em 1986 no México, Valdano abandonou a carreira de jogador um ano depois quando ficou doente (hepatite B).
Amigo de escritores como o colombiano Gabriel García Marques, ele tem uma visão do futebol muito próxima do "realismo fantástico" em voga na América Latina nas décadas de 60 e 70.
Entre as respostas de Valdano à Folha, por fax, o argentino ilustra sua visão do esporte com frases curiosas.
Algumas dessas frases: "É um erro reduzir o futebol a uma expressão só muscular", "Quando um homem joga, ele desabafa" e "Jogar futebol e escrever são as únicas coisas que me desconectavam da realidade."
Leia a seguir a entrevista:

Folha - Você acredita que o Barcelona e o Real Madrid, que jogam ofensivamente, vão influenciar na mudança nos esquemas retrancados dos times espanhóis?
Jorge Valdano - Vai depender dos resultados porque a sociedade atual vive do triunfo e só dá razão para aquele que ganha.
Folha - Como você vê a atuação de Parreira no Valencia?
Valdano - O projeto de Parreira está em formação e me parece difícil classificá-lo agora.
Folha - Como foi tornar-se herói do Real Madrid, depois de ter sido o carrasco da equipe nas últimas temporadas, quando você era o técnico do Tenerife?
Valdano - Uma das vantagens -e também um dos inconvenientes- do futebol é que o fato mais recente apaga todo o anterior.
Quando da mudança de equipe, eu me senti ajudado por essa teoria. Em todo caso, como técnico do Tenerife, só me limitei a cumprir minha obrigação. Nisso não há nada de perverso.
Folha - Quais são suas afinidades com Johan Cruyff? Existe uma amizade entre vocês?
Valdano - Nossa relação é cordial e as afinidades futebolísticas são maiores que as diferenças.
Folha - O comando da seleção da Argentina ou da Espanha está em seu destino profissional?
Valdano - Neste momento estou vivenciando uma aventura profissional apaixonante e não me parece fácil conciliar esse momento com meus sonhos longínquos. Mas não é má idéia.
Folha - Como você recebe as críticas de que o Real é líder não pelos méritos do técnico e sim pelos gols de Zamorano?
Valdano - O êxito de um jogador do Real Madrid é um êxito meu, portanto, não vejo nenhum fundamento nesse tipo de crítica.
Folha - Laudrup marca a diferença entre o Real do ano passado e o da atual temporada?
Valdano - Acredito mais nos jogadores que nas táticas, e Laudrup é um grande jogador. De qualquer maneira, devo dizer que Laudrup não esteve em três partidas do campeonato e o time não mudou suas estatísticas favoráveis. Digo isso para ser justo com a equipe, não comigo.
Folha - Há uma história que parte da formação política de Maradona é fruto das conversas entre você e ele durante a preparação da Argentina para o Mundial de 86. Isso é verdade?
Valdano - Minha relação com Diego sempre foi boa, mas sua personalidade é demasiadamente poderosa e complexa para admitir conselhos.
Um dos méritos civis de Maradona é que ele faz uso de sua liberdade e de seu poder. Isso é que faz desesperar o "poder real".
Folha - Você tem ambições políticas? Já pensou em seguir os passos de Carlos Reutemann, ex-piloto da F-1 e hoje governador na província de La Rioja?
Valdano - Me interessa a política e respeito os políticos, mas minhas ambições não passam por aí.
Folha - Você se define um "menottista", em alusão ao ex-técnico da seleção Cesar Luis Menotti. O que significa?
Valdano - Marcar por zona, respeitar a bola, o público e o adversário. Crer na tradição antes que na revolução, antepor o jogador à tática.
Folha - Os políticos na Argentina se aproveitam dos sucessos do esporte nacional?
Valdano - Os políticos têm essa tentação no mundo inteiro e alguns não sabem como vencê-la.
Folha - Você prefere a seleção argentina de Daniel Passarella ou a de Alfio Basile?
Valdano - Ainda não há perspectiva para poder escolher entre uma e outra.
Folha - Como surgiu seu gosto pela literatura?
Valdano - Sou um autodidata e só me deixo guiar pelo prazer.
Folha - É sua a frase "Gosto mais de escrever do que de dirigir uma equipe"?
Valdano - Só disse que jogar futebol e escrever são as únicas coisas que me desconectavam da realidade. Comandar um time me apaixona, mas é demasiadamente "real".
Folha - Gabriel García Marques, da Colômbia, e Jorge Luis Borges, da Argentina, estão entre seus escritores preferidos. Por que essa opção?
Valdano - É como perguntar para mim por que gosto de Pelé e Maradona: porque são grandes.
Folha - O que representa cada um desses escritores para você?
Valdano - O mesmo que Jorge Amado (do Brasil), Julio Cortazar (da Argentina), Juan Rulfo (do México), Mario Benedetti (do Uruguai) e tantos outros que vêem mais além e que descrevem isso maravilhosamente.
Quando me encontro com um amigo escritor, o que faço é ficar calado, escutando o que diz.
Folha - Saiu na Espanha sua biografia. Há partes no livro que relatam o começo de sua carreira como jogador.
Valdano - O livro não tem uma intenção biográfica. Toma minha experiência no Tenerife como pretexto para dar unidade àquilo que algumas pessoas -exagerando muito- chamam de filosofia.
Folha - O que você acha do apelido "El filósofo"?
Valdano - Isso tem a ver com a necessidade do jornalismo de criar rótulos. Sou uma pessoa reflexiva e ponto final.
Folha - Você gosta de poetizar o futebol?
Valdano - É um erro reduzir o futebol a uma expressão só muscular. Quando um homem joga, ele desabafa e, se sabe enxergar, pode descobrir uma orgia entre o bem e o mal.

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