São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A HISTÓRIA NEGATIVA

BARBARA FREITAG; SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

SERGIO PAULO ROUANET
Rouanet - Mas o sr. é cauteloso, talvez cauteloso demais, professor Habermas! Em seu comentário à teoria comunitarista de Taylor, o sr. não teria feito concessões excessivas? O sr. propôs uma solução muito elegante para reconciliar o universalismo e o particularismo, diferenciando entre a cultura política e a cultura no sentido etnográfico.
Habermas - Sim, chamo esta última de "subcultura".
Rouanet - Portanto, as culturas estrangeiras, com seus próprios usos e costumes, são bem-vindas em nosso próprio país, desde que sejam politicamente aculturadas.
Habermas - E, em segundo lugar, desde que o sistema jurídico continue sendo individualista.
Rouanet - Sim, não há direitos coletivos.
Freitag - Bem, agora chegamos ao âmago da questão.
Rouanet - Isto é, não é necessário nenhum corretivo à construção liberal dos direitos humanos; basta aplicá-los de modo consequente e coerente. Mas minha questão é a seguinte: essa separação é realmente possível? Podemos separar a cultura política da cultura em geral? Como o sr. sabe, na França as moças islâmicas não podem entrar na escola com o seu véu...
Habermas - ... Por que não? As moças católicas usam a cruz.
Rouanet - Os franceses dizem que isso transgride a tradição leiga da escola republicana.
Habermas - Mas, nesse caso, todos os símbolos religiosos deveriam ser removidos.
Rouanet - É claro. Mas isto chama a atenção para o meu problema. Até que ponto se pode estabelecer uma separação nítida entre a cultura política e a cultura em geral? O uso do "chador" é politicamente indiferente e, portanto, permissível, segundo sua posição. Mas é realmente verdade que o conjunto de normas subjacentes ao uso do "chador" seja compatível com o exercício da cidadania política?
Por exemplo pode um imigrante turco, em seu bairro berlinense, por um lado bater em sua filha, porque ela sai sem véu, e, por outro lado, participar do espaço público, como eleitor?
(Habermas protesta, levantando os dois braços e pedindo a palavra)
Freitag - O professor está querendo usar seu direito de expressão...
(Todos riem)
Habermas - Não, isto não é possível, porque desde os anos 70 aprovamos uma reforma do direito de família, segundo a qual os direitos fundamentais são estendidos também à esfera familiar. E, quando esse pai turco espanca sua filha, num sentido literal, então ele está violando o direito vigente.
Rouanet - Nesse caso, meu exemplo foi mal escolhido, mas subsiste minha dúvida.
Habermas - Sim, o verdadeiro ponto é saber se a separação é possível. Eu diria que esse é o problema central em sociedades que se encontram hoje em processo de transformação. Isto vale, inclusive, para a Alemanha e, sobretudo, para os Estados Unidos, cujas subculturas hispânicas, na Flórida e na Califórnia já constituem maiorias, em algumas esferas.
Acho que esse é o problema central: quando uma cultura majoritária, que, por razões históricas, era idêntica com a cultura política, desprende-se dessa cultura política comum e, com isso, abre um espaço para coexistência, com igualdade de direitos, de várias subculturas. Portanto, um espaço para o véu... O que precisa mudar na França é que as pessoas se dêem conta de que, há séculos, as moças, e talvez os rapazes, sempre usaram uma cruz. Ou as aulas de religião...
Talvez não seja assim na França, mas na Alemanha só há aulas de religião católica, e, mesmo assim, em regiões com maioria católica -o que, talvez, seja apenas um argumento de "policy". Em princípio, deve ser possível aprender a conviver com as diferenças. Em Mannheim existe agora uma mesquita e não só igrejas. Sem dúvida, isso é penoso num país homogêneo.
Talvez vocês não possam entender isto no Brasil. Temos naturalmente uma série de pequenas subculturas, não definidas por critérios religiosos, e que se manifestam sob outros aspectos. Por exemplo, não há mais restaurantes alemães, mas em compensação podemos comer maravilhosamente em restaurantes chineses, gregos, italianos. Mas tudo isso se mistura com problemas sociais. Esses problemas surgem, por exemplo, na zona norte de Frankfurt. Porque, normalmente, os pobres vivem com os estrangeiros. É o padrão normal. Com o resultado de que os alemães proletários votam no Partido Republicano (de direita) e que os estrangeiros são espancados.
Mas isso não afeta a substância do nosso problema. Em primeiro lugar, parece-me que a separação entre a cultura política comum e a subcultura diferenciada é plausível como princípio normativo. Em segundo lugar, esse princípio parece ser realizável, e mesmo já foi realizado, até certo ponto, em países de imigração, como os Estados Unidos, onde há 20 anos a separação parecia ter se dado com sucesso. Realizou-se na medida em que a escola proporcionava a todos (supondo que todas as crianças frequentassem a escola) uma cultura política comum.
Essas escolas americanas são poderosos fatores de integração social. Todas têm seus "social studies", todas funcionam no espírito de Dewey. Impossível querer algo melhor. Essas escolas são a própria democracia! Formidável!
Mas por outro lado, os Estados Unidos tinham seus bairros chineses, seus "Italian quarters", etc. Quando é que as coisas começaram a dar errado? Vou opinar agora sobre países estrangeiros, isso para mim não é tão agradável. Acho que isso aconteceu, primeiro, quando surgiu um problema real, específico: pela primeira vez, os negros reivindicaram seus direitos, e, com isso, emergiram problemas conexos, porque eles estavam entre os habitantes mais antigos do país, pertenciam socialmente à classe baixa, etc.
Freitag - Em tudo isso há paralelos perfeitos com o Brasil. Embora naturalmente no Brasil a população negra não esteja tão avançada em suas reivindicações como nos Estados Unidos, porque entre nós a miscigenação racial torna essas relações menos nítidas.
Habermas - E o segundo ponto é que os hispânicos se tornaram tão numerosos que em alguns bairros deixaram de aprender inglês. A América terá que se confrontar muito breve com a grande questão: autorizará ou não uma segunda língua? Não tenho nenhuma opinião formada a respeito. Eu não vivo lá. Acho que se pode decidir numa ou noutra direção.
E se se decide que todos devem saber inglês, o que me parece razoável, tudo bem! Mas se se decide que devem existir duas línguas, então eu diria, que por mais difícil que isso seja, todos devem ser bilíngues, como na Suíça.
Freitag - Em princípio. Neste caso, as duas línguas devem ser incluídas no currículo.
Habermas - Sim! Por que isso não seria realizável? A idéia permanece a mesma. O que as crianças aprendem nas escolas com o nome de "Estudos Sociais", o que podemos chamar de educação formal, etc., isso deve ser idêntico, senão tudo desmorona. É justamente isto que está assustando as pessoas na América. Essa segmentação não ocorre em nenhum país europeu. Por isso deve existir uma forte cultura política. Mas ela deve ser aceitável para todos, e isso significa que as reivindicações legítimas dos hispano-americanos devem ser reconhecidas.
Rouanet - Mas não os direitos coletivos.
Habermas - Não, não.
Rouanet - Esse é o problema da "political correctness" (politicamente correto), porque este movimento advoga justamente uma solução comunitarista, à maneira de Taylor. Seus partidários falam dos direitos (coletivos) da comunidade negra, da comunidade hispânica, etc. E isso é muito perigoso.
Habermas - Muito. Isso não é possível.
Rouanet - Num ponto eu dou razão a Taylor. Ele erra quando diz que é necessário modificar a teoria liberal dos direitos humanos para atender às reivindicações das subculturas, mas tem razão quando acentua o enorme potencial de conflito entre a perspectiva dos direitos universais a perspectiva subcultural.
Esse conflito não existe teoricamente. No plano teórico acho que o sr. resolveu a questão, recorrendo a um conceito de autonomia que abrange tanto a dimensão pública quanto a privada. Para o sr., e estou inteiramente de acordo, os membros de uma certa cultura podem usar direitos políticos de cunho individualista, no exercício de sua autonomia pública, para proteger a identidade de suas próprias culturas. Mas factualmente, esses conflitos podem existir. Quando não se pode exprimir livremente sua opinião sobre a história africana sem ser acusado de racista, então existe efetivamente um conflito.
Habermas - Mas, sr. Rouanet, eu não vejo por que precisamos para isso direitos coletivos?
Freitag - Mas ele justamente critica esses direitos coletivos.
Habermas - Eu sei disso. Mas ele disse que se autorizássemos as subculturas a terem uma existência própria, teríamos que pagar o preço de violar nossos sistema jurídico, baseado nos direitos individuais. E eu diria não! Vejam só, a idéia da "preferred hiring" ou o contingenciamento de negros e mulheres na admissão a certos cargos... Podem-se estabelecer quotas desse tipo num sistema jurídico de caráter individualista? Sim, desde que seja uma medida temporária. Deve-se verificar se as desvantagens iniciais de certos grupos, historicamente condicionadas, se reduziram ou não com a introdução das quotas. Não tendo havido melhorias, depois de algum tempo, a situação desses grupos, este contingenciamento deve ser abolido.
Freitag - Ele só pode ser visto como uma ajuda inicial.
Habermas - E não pode ser introduzido sob a forma de direitos coletivos para mulheres ou negros.
Rouanet - Claro que não! Mas não gostaria de ser mal interpretado. Não estou contestando às subculturas seu direito à existência. Seria uma monstruosidade. O que eu quis dizer antes é que a mera diferenciação conceitual entre a cultura política e a cultura no sentido etnográfico não basta para resolver conflitos reais, empíricos, entre normas universais e valores particularistas.
Freitag - Sim, o que Sergio teme é que uma minoria, como a das mulheres, dos gays, dos negros, dos porto-riquenhos, em vez de agir como o sr. propõe, se isole e bloqueie o acesso de outros ao seu grupo. Essa tendência para a segmentação e para o isolamento, tal como ela se manifesta na "political correctness", parece radicalizar-se nos EUA a tal ponto, que constitui um perigo para o momento universal, para o conceito de um sistema jurídico válido para todos.
Essa tendência vai tão longe, que nas universidades certas áreas só podem ser ocupadas por determinadas minorias e grupos, e que outros não podem ultrapassar essas fronteiras, erigidas a partir de dentro, numa espécie de auto-guetoização. Esse perigo pode ser transposto para os conflitos mundiais, por exemplo na antiga Iugoslávia. Quais os argumentos que estão no centro deste conflito? Argumentos étnicos, religiosos, patrióticos, que criam limites intransponíveis e impossibilitam qualquer forma de entendimento.
Muitas vezes -e isso virou quase uma brincadeira familiar- nós nos perguntamos ao ler os jornais: "O que Habermas diria sobre isso?" (risada geral). Onde fica a ação comunicativa, quando a ação estratégica ganhou a supremacia? Será que é lícito deixar as armas falarem?
Habermas - Não, não, não! Não sou intervencionista!
Freitag - Eu sei!
Habermas - Acho que não se pode intervir em guerras civis. É impossível!
Freitag - Primeiro deve existir uma base comum. E por isso é importante o que o sr. mencionou e que também é um dos meus temas favoritos: a educação deve ser levada em conta. Se quisermos evitar que a violência fale e que as armas tomem a palavra, a educação deve criar na base um fundamento de entendimento mútuo.
Habermas - Mas não há contradição, em termos normativos, entre condenar o conflito entre esses grupos étnicos e dizer que devemos ter o direito de viver e de educar nossos filhos no contexto cultural em que nós próprios nos reconhecemos como pessoas e encontramos nossa identidade.
Rouanet - Um direito individual, bem entendido...
Habermas - Sim. É verdade. É um direito individual, que pode levar a subsídios estatais e a decisões estatais relativas a currículos. São direitos individuais! Se um número suficientemente grande de turcos vive no bairro berlinense (um bairro operário de Berlim), há boas razões para ensinar religião islâmica numa escola pública. Mas não com a democracia, como eu disse no artigo sobre Rawls. Por exemplo, Rawls usou uma expressão que parece banal, mas significa a mesma coisa, "not unreasonable world views". O que quer dizer "not unreasonable world view"?
Eu responderia: uma concepção do mundo que pode ser defendida com argumentos. Naturalmente, os maometanos estão tão convencidos quanto os cristãos de que sua fé é a única verdadeira. Isto está ok. Mas há dois níveis. Num nível, dizemos que eles têm uma atitude fundamentalista com relação à verdade de sua religião. E existe um segundo nível, em que dizemos que eles têm uma atitude não-fundamentalista, no sentido de que, embora acreditem que seu Deus é o único verdadeiro, têm consciência de viverem em uma sociedade que assegura um universo público em que sua religião é apenas uma entre várias, e por isso estão dispostos a argumentarem publicamente.
Eles sabem que só podem fazer propaganda de sua fé invocando razões ("Gründen"). Se forem inteligentes, invocarão razões publicamente acessíveis, se insistirem, podem invocar razões extraídas do Corão, mas o essencial é que recorram a razões. No momento, porém, em que da crença num único Deus verdadeiro decorra uma só ação fundamentalista, tudo está perdido.
Freitag - Portanto, precisamos de Lessing, com "Nathan, o Sábio".
Habermas - Sim, naturalmente Lessing! Isso está ligado à própria organização do Estado.

Continua à pág. 6-9

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