São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Diário de um anarquista

ANDREA LOMBARDI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Seu primeiro romance, "Os Indiferentes, chegou a ter alguma influência sobre "A Náusea, de Sartre, de 1938, conforme atesta o crítico italiano Gianfranco Contini.
"Diário Europeu nos dá um outro corte, que acrescenta ao Moravia romancista o enviado especial da cultura italiana ao mundo da política: trata-se de mais de 60 crônicas, originalmente publicadas em sua coluna no jornal "Corriere della Sera, e que abrangem o período de sua eleição ao Parlamento Europeu como independente nas listas do então Partido Comunista Italiano e algumas de suas viagens (União Soviética, Iêmen).
A transparência de seu estilo ajuda o leitor nesta verdadeira enciclopédia. Ele deixa o leitor completamente à vontade por meio de um diálogo onde sua própria versão dos fatos é afirmada sem rodeios, uma espécie de olhar indiscreto a serviço do leitor curioso. Desta forma, a presença de Ronaldo Reagan no Parlamento Europeu ("o que impressiona, nele, é o discreto charme à la Buñuel"), ou sua própria luta como deputado em defesa da paz contra a bomba atômica, originam uma sutil auto-ironia: "até em relação à propaganda anti-atômica percebe-se de pronto a tendência consumista... É um divertimento bastante estranho ficar ouvindo alguém que nos conta que de uma hora para outra poderemos todos morrer queimados vivos".
A atuação política confirma uma imagem consolidada: a do intelectual italiano engajado, o intelectual orgânico, que, de Maquiavel até Gramsci, persegue a reforma da sociedade. O intelectual que é continuador de uma tradição "individualista e anarquista, herdeira de um império nivelador".
O comentário político constitui apenas o pretexto para um contraponto localizado e atento com a literatura. Moravia se revela leitor voraz, resenhista rápido, crítico em busca da essencialidade: fala de Dante e dos poetas contemporâneos homossexuais ("só os homossexuais falam de amor"), de Borges, cuja frase "a origem não européia faz dele, em relação à Europa, o que os escritores alexandrinos eram em relação à Grécia" constitui uma hipótese convincente para a produtiva obsessão do escritor argentino com a reinvenção das tradições.
Moravia revela seu gosto por uma leitura em que literatura e sociedade estão sempre fundidas: "a poesia pode ser experimental até os limites da palavra, enquanto o romance só pode sê-lo até os limites da experiência. E a experiência, é claro, não pode superar muito os limites do mundo real".
Talvez seja por isto que muitos de seus romances tenham-se tornado filmes ("A Romana, dirigido por Zampa, em 1954, "A Ciociara, por De Sica, em 1960, "Vidas Vazias, por Damiani. em 1963, "Os Indiferentes, por Maselli, em 1964, etc). Moravia é engajado por sentir-se italiano, perenemente empenhado em resgatar uma imagem de anarquistas, atrasados e românticos que, desde Stendhal ("A Cartuxa de Parma) tinha sido o rótulo dos italianos.
Apesar de se sentir italiano, Moravia representa uma nova geração de escritores europeus, de grande sucesso, que sacrificaram, neste anseio de produtividade e de engajamento, um estilo mais trabalhado, optando por uma linguagem menos complexa, mais traduzível (usando uma expressão de Italo Calvino). Definitivamente, teremos com este novo livro, uma confirmação do parecer do crítico Gianfranco Contini sobre Moravia: "Escritor iluminista perfeitamente ateu, debruçado sobre a realidade com uma participação sentimental decrescente... Um conteudista ... que, por meio de uma koiné cinzenta e neutra, afirmava uma língua de grau zero".
Podemos concordar com Italo Calvino, que, descrevendo o panorama da ficção contemporânea italiana, dirigia ao Moravia as alfinetadas: "Moravia é caracterizado pela falta de tensão; ele representa a voz das pessoas preguiçosas e abúlicas... representa condições de preguiça moral e consegue expressá-lo por meio de uma fidelidade fria, que é seu forte". Moravia, polemizando com Giorgio Manganelli, um de seus críticos e um dos escritores italianos mais exigentes, que de seus romances dissera serem apenas "sonhos engenhosamente doentios de um homem são", chegou a citar a crítica deste no "Diário Europeu, sinal de que as críticas, vindas de tão ilustres colegas, soavam como um elogio e ressaltavam o ofício de fabulista que ele sabia possuir.

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