São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Os contos de fada indianos de Mallarmé

ROSIE MEHOUDAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

O poeta francês Stéphane Mallarmé reescreveu, na linguagem que lhe é própria, a tradução francesa de Mary Summer de quatro contos indianos, retirados de obras clássicas como o Mahabarata.
Conta-se que reescreveu os contos em poucos dias, em 1893, para agradar a uma amiga e ganhar algum dinheiro. O texto é, contrariamente ao que é habitual na sua obra, de leitura bastante fácil, ainda que inteiramente mallarmaico. Poderia prestar-se a fim até mesmo didático: demonstrar, por exemplo, como narrar com prazer.
Os "Contos Indianos são uma espécie de contos de fada onde o desejo não só fia a trama amorosa, mas preside cada segmento de frase. Palavras e significações de planos diversos "saltam" surpreendentes, numa prosa que, sobre (ou sob) fundo de renovada e lúdica latência, sabe o que é contorno nítido, jogar fora partículas gramaticais redundantes e obscurecedoras, bem como qualquer passagem objetiva de pouca significação em si. "Pintar, não a coisa, mas o efeito que ela produz", escrevia Mallarmé a Cazalis. "Sua mão crispada agita a ruína", referente a um insano e viciado jogo de dados no último conto, é um exemplo desse precipitar-se no que interessa.
Na reescritura dos contos, a linguagem convencional de Mary Summer é estruturalmente transmutada e torna-se uma prosa-poesia-teatro -arte até certo ponto conservada pela tradução brasileira, e perdida quando esta se depara com algumas sutilezas fundamentais da estilística de Mallarmé.
Ao render-se à fluência de nossa língua, evitando ser tolamente literal, a tradução por vezes perde as transgressões de hábitos linguísticos que em Mallarmé são produtoras de sentido e de estranhamento -alegre, com frequência. Um pequeno exemplo: "Le visage en belle santé" será traduzido por "o rosto belo e saudável".
A tradução está no geral desatenta ao uso expressivo da vírgula nos contos, pasteurizando-o segundo as regras gramaticais de praxe -ainda que, às vezes, apresente alternativas não inferiores às do texto francês! Frequentemente repõe redundâncias usuais (inclusive o verbo"ser") que o autor havia suprimido, e vocábulos gramaticais redutores do aspecto cortante original: "Damayanti se revela ser a mais ardorosa" é forma impensável em Mallarmé, a preposição de "Por impudência ou prudência" inexiste naquele.
Ambiguidades passam despercebidas, nem todas de tão difícil resolução em português como a desta passagem, exemplar do estilo dos contos, em que o rei instrui Soundari sobre um ritual: "Tu contas nos dedos cada ingrediente sagrado; oh, eu os quero, tão pequeninos, iguais a flores, na minha palma feliz, e continua: quando a gordurosa fumaça (...)". Depois da interrupção amorosa, o imperativo "e continua reconduz às instruções. O original: "tu comptes sur tes doigts chaque ingrédient sacré; oh! je te les prends, menus et pareils à des fleurs, dans ma paume heureuse, et continue: Quand la grasse fumée (...)". Aqui, "et continue" une num mesmo ato a primeira e a segunda pessoa (presente do indicativo e imperativo, respectivamente) do Singular.
A tradução brasileira retrocede, a partir de um certo ponto, já admirável, no que o autor inovou com relação ao texto de Summer. Em parte, especialmente nos dois últimos contos (os dois primeiros estão mais bem traduzidos), desmallarmiza e despoetiza Mallarmé.
No geral, porém, a propriedade com que o texto francês é compreendido e a presença de inúmeras soluções verdadeiramente felizes na nossa língua fazem desta tradução um ponto de partida valioso para outras (ou esta mesma, revisada e refinada), que se aproxime mais e mais em carga poética da escrita de Mallarmé. Se não é possível fruir destes contos em português tanto quanto permite o original, para quem não compreende francês com certeza vale lê-los.

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