São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A imagem do desejo

A Cleópatra de Shakespeare encarna a fantasia masculina

HAROLD BLOOM

A representação de mulheres por autores masculinos, quando eles são autenticamente fortes, não me parece menos persuasiva do que os retratos equivalentes produzidos pelas escritoras. Podemos nos perguntar sobre os pressupostos da crítica feminista contemporânea, quando nos lembramos de como é difícil adivinhar o sexo de um autor só com base na sua capacidade de representação feminina.
A Clarissa Harlowe do grande autor seiscentista inglês Samuel Richardson, ou a Isabel Archer do "Retrato de uma Senhora" de Henry James pertencem à mesma família da Emma Woodhouse de Jane Austen, ou de Dorothea Brooke, no romance "Middlemarch" de George Eliot, todas elas heroínas da Vontade Protestante (não importa quão secularizada). E, no entanto, se eu não soubesse quem é quem, diria que Clarissa e Isabel são obra de escritoras mulheres, e que Emma e Dorothea correspondem a visões de escritores homens.
Cleópatra -seja em Shakespeare, Dryden, ou em Shaw- parece mesmo a criação de uma imaginação masculina, se não por outro motivo, pelo menos porque representa, melhor do que qualquer outra personagem literária, a imagem do desejo que provoca e atormenta a maioria dos homens.
Ela é certamente a mais memorável imagem shakespeareana do desejo, ultrapassando até a famigerada "Dark Lady" dos Sonetos.
Salvo engano, nenhuma mulher tentou escrever uma Cleópatra, na procissão que vai de Horácio, passando por Plutarco, até Shakespeare, Corneille e Dryden, e mais adiante até Pushkin, George Bernard Shaw e Thornton Wilder.
Será que ela não passa de uma projeção masculina do desejo? Ou só agora entramos numa era em que a consciência feminina poderá descobrir em Cleópatra uma figura adequada para a representação de relações entre o poder e os sexos?
De forma como leio a peça de Shakespeare, ela não tem quase preocupação moral; está concentrada no amor heróico e nos limites de uma paixão grandiosa e destrutiva. Mas esses limites não são nem morais, nem sociais: são psicológicos. Por meio deles, Shakespeare nos mostra, mais uma vez, como antecipa -e, mais que antecipa, contém Freud, diminuindo muito, comparativamente, a estatura do inventor da psicanálise para o mapeamento da dialética entre as paixões e a sociedade.
A idéia mais profunda de Freud sobre o amor foi uma constatação de que o desejo pelo outro começa sempre no desejo por si mesmo, e acaba chegando de volta ao ponto de partida. É uma percepção shakespeareana, mais clara em "Antônio e Cleópatra" do que em qualquer outra peça.
Um egoísmo tão avassalador deveria ter um aspecto pouco agradável, mas Shakespeare nos mostra uma relação amorosa entre dois titãs carismáticos, e o carisma é uma arma que dobra qualquer platéia.
O que mais conta neles é essa grandeza; uma grandeza mais acessível à sensibilidade renascentista do que à nossa. Na tradição ocidental, Cleópatra é o exemplo supremo da imagem que os homens desejam; mas essa supremacia tem mais a ver com a grandeza do que com a sedução.
Como Antônio, ela é um mundo em si; e somada a ele está próxima de ser o mundo inteiro -não fosse o talento político de Otávio. O Oriente cai com Cleópatra, não para nos dar um triunfo da ordem romana, mas para nos trazer um outro mundo, mais próximo daquele que Shakespeare conhecia.
Alterando Plutarco, Shakespeare faz de Antônio um herói abandonado por Hércules, não por Dioniso, o que torna mais fácil consigná-lo ao passado. Sua morte, mesmo gloriosa e nobre, não chega a ser, como a de Cleópatra, o mais vitalizante dos suicídios. Abandonado pelo deus, Antônio morre uma morte humana. Mas Cleópatra morre para cima: transforma-se em fogo e ar, Ísis que perdeu seu redentor Osíris.
Com exceção única da Bíblia, nossa fonte principal para a representação de homens e mulheres carismáticos é Shakespeare, o mais forte de todos os escritores do Ocidente. O texto inglês da Bíblia de Genebra constitui uma influência predominante sobre o seu sentido de personalidade e caráter.
Mas Cleópatra é uma figura tão pouco bíblica quanto possível, embora sua intensidade carismática não deixe de ter um débito insólito com as Escrituras. Seu "esforço de graça" é mais uma armadilha do que um dom de Deus; mas seu êxtase final a levará aos deuses do Egito, entre os quais pertence.
O carisma não é um dom da natureza, nem da sociedade. Otávio, num tempo futuro, além da tragédia de Shakespeare, há de se tomar Augusto, divinizado como uma pequena deidade romana; mas não será jamais um acolhido dos deuses. Antônio, o Hércules dionisíaco, tem o fim de um mortal carismático. Já Cleópatra morre como o Egito e, portanto, não morre.
Freud nunca escreveu diretamente sobre ela, mas sua reflexão afrontosa sobre a imagem da sedutora deve alguma coisa ao modo como Cleópatra ameaça os padrões romanos de autoridade masculina. Não é a Cleópatra decadente de um poeta romântico como Gautier, ou de Gustav Klimt, que se deixa entrever na sedutora deusa da Morte que tanto espantava Freud; mas sim a cigana robusta, na visão erótica de Shakespeare.
Uma leitura freudiana dessa Cleópatra acabaria por reduzi-la ao papel de mulher fatal castradora, só invocada por Antônio em seu pior momento: "A bruxa há de morrer. Vendeu-se ao menino romano...Vai morrer por isso."
Se Antônio se despedaça logo a seguir, isto não é porque Cleópatra o tenha castrado. Os membros desse Osíris já tinham só começado a se espalhar muito antes de ele chegar ao Egito e se apaixonar pela rainha. Faz parte da grandeza do dionisíaco Antônio que ele acabe mesmo aos pedaços. Ele pertence à mesma ordem de heróis trágicos shakespereanos que inclui Otelo, Lear e o herói-vilão Macbeth; enquanto que as afinidades últimas de Cleópatra são com Hamlet.
Como Hamlet, ela também domina um quinto ato, marcado por uma apoteose transcendental no fim e por um progressivo abandono, ou calma, que permite a apoteose. Até hoje o mais original dos poetas (só rivalizando com o escritor, ou escritora "J" do Pentateuco) Shakespeare atinge, com Hamlet e Cleópatra, uma nova modalidade do carismático, que põe em xeque as formulações de Max Weber sobre o assunto.
Para Weber, o dono do carisma depende do sucesso: o reconhecimento de seus seguidores é tudo. Já Cleópatra será vencida pelo mundo, por Otávio, assim como Hamlet aceita ser passivo frente às artimanhas de Cláudio com Laertes. Mas nada poderia estar mais longe do tom de derrota do que as mortes de Hamlet e Cleópatra.

"Charmian: Estrela da manhã!
Cleópatra: Paz, paz! Não vês este bebê no meu seio, mamando até que a sua mãe adormeça?
Charmian: Ah, chega! Chega!
Cleópatra: Doce como um bálsamo, suave como o ar, delicado -Ah, Antônio!

As serpentes sobre o seio são, de uma vez só, Antônio e os filhos de Cleópatra com ele, mas ela é mais que mãe sedutora, mais que uma Ísis. Como Hamlet, sabe afinal o que elas mesma representa e, ao chegar a esse conhecimento, aprendeu algo que todos precisaríamos saber, sobre a natureza da própria representação.
Ao invés de nos contar, Hamlet prefere deixaaar as coisas como são. Cleópatra, mais do que ele, transforma-se em fogo e ar, passa além do mundo e além do teatro. Nenhuma metáfora do teatro será capaz de contê-la, porque já deixou de fingir.
O paradoxo shakespereano, tão amplo que é capaz de conter Freud sem ser contido por ele, nos oferece uma personagem literária a um só tempo integralmente sensual e integralmente transcendental.

Tradução de ARTHUR NESTROVSKI

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