São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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O triste destino econômico do exotismo

CONTARDO CALLIGARIS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Esperando uma interminável conexão em Guarulhos, depois de ter lustrado os sapatos, decidi cortar o cabelo. Também seria uma ocasião, depois de um mês fora do país, para reatar as conversas de boteco Às quais gosto de dar corda. Sentei e -depois de dar as instruções básicas- disse que estava ausente há um bom tempo, perguntado então como iam as coisas no Brasil.
Estava aparentemente tudo ótimo. Insisti: "e a inflação?". "Está baixa, dizem dois por cento, mas por certas coisas é mais, deve ser dez ou doze", respondeu meu interlocutor. Decidi tomar a defesa preventiva do governo e declarei que, nesta altura, o combate contra a inflação deveria ser a responsabilidade da população e não podia ser esperado de uma impossível fiscalização. "Como assim?".
Fui explicando: o governo não pode correr atrás dos preços de cada boteco, também não pode se transformar em uma máquina repressora; os consumidores devem fazer suas escolhas e naturalmente penalizar os comerciantes que aumentam os preços. Dei o exemplo irresistível (e de fato ainda incompreensível para mim) do ágio sobre os carros básicos nacionais. Como é que as pessoas podem aceitar de pagar 30 ou 40 por cento acima da tabela, quando com o mesmo preço poderiam comprar um carro de valor superior, é com efeito um mistério.
Nas conversas de boteco passadas, aliás, este tema tinha encontrado sempre uma adesão tão maciça que começava a me perguntar onde estavam os compradores de carros com ágio. Pois não encontrava nenhum. O cabeleireiro não confessou e talvez nem tivesse algo que confessar neste sentido, mas, no mínimo, foi presumivelmente mais sincero do que outros e respondeu: "Certo, mas aí o cara não tem o carro que ele queria. Ele quer um Gol não uma Parati".
Fiquei perplexo, olhei ao redor para a loja deserta me perguntando de repente quanto o meu interlocutor devia ganhar para considerar que a adequada satisfação de seu gosto (não da necessidade de ter um carro) pudesse valor três ou quatro mil reais de ágio. Admiti (tacitamente) que talvez eu não pudesse julgar, por considerar tanto um Gol como uma Parati carros espantosamente ruins.
Passei então a contar que em Nova York, onde moro a maior parte de meu tempo, os consumidores cuidam dos preços, ao ponto de forçar uma verdadeira guerra de liquidações antecipadas ou promoções especiais entre varejistas. Cigarro, nos EUA, tem preço livre, por exemplo. Ao redor de minha casa dá para comprar aquele que infelizmente fumo de US$ 2,65 até US$ 3.15. Expliquei que, por apenas quarenta centavos, eu estava disposto cada dia a desertar a loja de jornais bem embaixo de meu edifício e percorrer, chuva ou vento, 200 metros (estupidez minha: nunca compro reserva de cigarros pois sempre penso que logo deixarei de fumar).
Nesta altura, o homem parou de cortar meu cabelo e disse: "Sei, na Europa também eles vivem assim. Mas aí não vivem, vegetam. O Brasil é mesmo o melhor lugar do mundo por isso. A gente não dá bola para estas coisas".
Imagino que Roberto DaMatta se extasiaria frente a tamanha tradicional sabedoria. Viu? A lógica mesquinha que uma modernidade contadora e calculista quis nos impor não passou nem passará. "Aqui sabemos gozar a vida" -de novo meu interlocutor.
Lembre-se, no número de Mais! de domingo passado, a entrevista com John Sculley, famoso executivo e expert econômico norte-americano. Sculley antevia para o Brasil um futuro de "país de consumidores". O futuro já está aqui. Por que pretender ser produtores, com efeito? Produzir cansa, consumir descansa. Diremos que é só um infando projeto e complô do capitalismo internacional, que quer nos reduzir a uma massa manipulada de subdesenvolvidos compradores de bugiganga eletrônica com orelhinhas de Mickey.
Só que -entre protecionismo, desastre educativo e investimentos privados a retorno imediato- nenhum inimigo externo mandou o país se desenvolver de tal forma que ele tenha hoje em massa o que ninguém quer comprar: mão-de-obra barata e pouco qualificada. Não é de estranhar que Sculley nos veja como lugar de vendas. E a responsabilidade de assim lhe aparecer, melhor encará-la como sendo a nossa.
O pensamento do cabeleireiro vem de longe na história nacional. A desenvoltura com o dinheiro ganho talvez seja o resto obstinado de uma cultura de antes da idéia da correspondência entre trabalho e salário. O regime escravocrata nos deixou em herança (entre outras coisas) uma visão do trabalho o como bico ou como privilégio, e uma vivência do dinheiro ganho respectivamente ou como gorjeta ou como regalia.
Por isso, somos as vítimas ideais de qualquer tendência inflacionária: o que se gasta aqui não aparece como o fruto legítimo de nosso suor, mas como a gorjeta que a bondade do dono nos outorgou a pesar de nossa fundamental presumida vagabundagem.
Ou então gastamos privilégios que o senhor nos concedeu ad vitam, e que também não dependem de nosso trabalho (muita resistência às reformas propostas do estatuto dos funcionários se originem talvez assim).
A imagem exótica e gozadora que projetamos -por exemplo, como país de consumidores despreocupados com os preços- por charmosa que seja, não é uma segunda natureza. Proposta por muitos como identidade, prazerosa quintessência antropológica do ser brasileiro, ela é o fruto de uma história que há tempo reserva ao país e a seu povo um destino no mínimo incerto.
Exatamente neste sentido, é crucial o livro que Otavio Souza publicou, poucos meses atrás, pela editora Escuta: "Fantasia de Brasil - as identificações na busca da identidade nacional". Não é nenhuma natureza de nossa gente, mas uma perigosa resposta ao drama da constituição de uma nação colonial. Otavio mostra como, atrás da simpatia condescendente que o exótico suscita nos outros, uma aversão racista possa vir a nos espreitar a cada instante.
Outra ameaça -mais concreta, mas, na verdade, complementar- é o lugar que pode atribuído em uma economia global, a quem escolher de promover seu exótico charme: o de uma massa ideal de ociosos, exército de reserva disposto a trabalhar por uma migalha já hipotecada na loja de "commodities" do outro lado da rua, na frente do boteco e das palmeiras.
Com o livro de Otávio, devo mais um diálogo, sobre a especificidade do desejo que anima os países que nasceram como colônias. Fica para a próxima.

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