São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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O vírus Ébola e seus mutantes

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL

O filme "Epidemia", de Wolfgang Peterson, com o excelente Dustin Hoffman, merece o título. É uma epidemia de improbabilidades.
O que irrita o cientista, senão o intelectual em geral, tanto nos filmes de um Hitchcock quanto nos livros de uma Agatha Christie é a necessidade de uma sucessão de "coincidências", ou seja, de acontecimentos de baixa probabilidade para a sustentação do enredo.
Quando o cientista lê uma obra de ficção ou assiste um filme, da mesma forma que o não-cientista, ele agrega naturalmente as regras do jogo, contanto que estas não mudem no meio do caminho. O homem inteligente, mesmo que materialista, pode se deliciar com uma história sobrenatural.
O importante é que as regras do jogo já estabelecidas no começo sejam respeitadas. Spielberg não precisou explicitar por que processo o seu ET era capaz de fazer voar uma bicicleta. E ninguém, nem o mais rígido cientista, exclamou "um absurdo". E apenas porque a levitação benevolente do simpático e indefeso ET estava, de certa forma, de acordo com as regras do jogo.
O sistema imunológico de um animal qualquer pode ser ativado depois que este foi contaminado pela introdução do próprio vírus atenuado ou um seu derivado. Todavia, este processo só é possível quando há um período de incubação relativamente longo. É o caso da primeira vacina descoberta, ou seja, aquela contra a raiva. Dentre as vacinas correntes, esta contra a raiva é a única que é usada em indivíduos já contaminados e que ativa o sistema imunológico do indivíduo contagiado. As vacinas contra Aids em estudo são, em princípio, deste tipo.
Quando o macaquinho do filme de Peterson foi usado para fornecer "vacina" não poderia ter sido este o mecanismo, ou seja, o mesmo que ocorre com a raiva, pois os doentes já estariam com seus sistemas imunológicos altamente ativados pela infestação elevada do vírus. Alguns à beira da morte, mesmo.
Embora não fique claro no filme, a única possibilidade seria de que os anticorpos já produzidos no macaco destruíssem os vírus dos pacientes humanos. Neste caso, o sangue do macaco atuaria como um soro e não como uma vacina de verdade. O que é inverossímil neste caso é um macaquinho de meio quilo fornecer anticorpos para milhares de enfermos. Não é impossível. É apenas improvável. O fato de terem misturado os anticorpos ativos em relação ao vírus mutado com os abundantes anticorpos eficientes apenas frente ao vírus não-mutados não altera muito esta situação.
Mutações de sucesso podem ocorrer a qualquer hora, em qualquer lugar, e, portanto, poderiam ter ocorrido em um hospedeiro que tivesse conseguido ativar com eficácia seu sistema imunológico. Entretanto, os anticorpos que foram eficientes contra o vírus não-mutado não serviram para atacar o mutado. Mas o hospedeiro era o mesmo. Isto quer dizer que o mesmo sistema imunológico foi eficiente contra dois vírus diferentes, letais para outras espécies semelhantes.
Além do mais, este supermacaco no interior do qual tantos acontecimentos de ordem molecular, possíveis, mas pouco prováveis, ocorreram em intervalo de tempo tão curto foi, justamente, o que foi capturado na África e conseguiu driblar a quarentena do Serviço de Saúde Americano e ser benevolentemente solto em um bosque.
O ridículo do filme atinge o seu apogeu quando o avião bombardeiro, levando a mais devastadora bomba não-nuclear do arsenal americano, encontra em sua "rota" o helicóptero levando Dustin Hoffman e retrocede. Bombardeiros não voam baixo como helicópteros, principalmente quando vão despejar "a maior bomba" disponível. E rotas não são linhas retas.
Todavia, estes artifícios, necessários para suprir a falta de imaginação do roteirista, não devem levar o leitor à conclusão de que um desastre epidemiológico viral semelhante às febres hemorrágicas produzidas pelo Hanta ou pelo Ébola estão fora de cogitação.
O próprio homem é um vetor pelo menos tão eficiente quanto qualquer outro animal. E pode receber o vírus em seu estado agressivo sem a necessidade das complicações sugeridas. O Ébola é real e suficientemente aterrador. O que o artigo da Revista da Folha não apontou, todavia, é que o seu atual confinamento a regiões remotas da África é consequência também daquilo que mais nos atemoriza.
A Aids, com longos períodos de incubação e de sobrevida, permite que o hospedeiro tenha infinitas oportunidades de transmissão. O Ébola, com períodos reduzidíssimos de contágio e com o alerta que provoca, acaba produzindo seu próprio confinamento. A viagem a pé de um indígena africano de sua aldeia contaminada por Ébola levará dez dias até a próxima. Morre, pois, no meio do caminho, se estiver ele também contagiado.
Por outro lado, alguém contaminado pela Aids dá várias voltas ao mundo antes que se aperceba sequer da doença. Assim, o elevado número de contatos compensa a baixa probabilidade de contágio em cada ocasião.
O fato de ser nível 4, ou seja, elevada aptidão para transmissão, não é, portanto, o único fator significativo, a não ser quando o vírus já atingiu uma área de grande concentração populacional. É muito difícil de ser previsto o que aconteceria com uma cidade como São Paulo se o Ébola aqui chegasse. Mas é quase certo que não daria tempo para você, paulistano, mudar-se.

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