São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A HISTÓRIA NEGATIVA

BARBARA FREITAG; SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

SERGIO PAULO ROUANET
Freitag - Admitida essa "guinada pragmática", o sr. acha que o "corte" está na "Teoria da Ação Comunicativa"?
Habermas - Sim, mas já nos anos 70...
Freitag - Sem dúvida, com trabalhos preparatórios, como os que foram depois publicados, em 1984, no volume suplementar "Estudos Prévios e Considerações Complementares Sobre a Teoria da Ação Comunicativa".
Habermas - Sim, sim.
Freitag - Mas eu comecei a me perguntar, depois de uma leitura mais atenta de "Facticidade e Validade", se com esse livro o sr. não estaria indo mais longe na "Teoria da Ação Comunicativa", ou, mesmo, orientando-se numa direção diferente. Lembro-me de nossa discussão em São Paulo, na USP, em 1989, na qual eu o confrontei com a necessidade de um "sociological point of view". O sr. me respondeu que, no momento, estava muito ocupado com o "moral point of view". O sr. elaborou esse ponto de vista na ética discursiva e outros trabalhos. Agora, em "Facticidade e Validade", o "juridical" ou "legal point of view" ocupa uma posição muito mais central.
Minha pergunta é: trata-se apenas, como no teatro, de uma simples mudança de foco, pela qual os holofotes iluminam, com mais ou menos intensidade, um ou outro "point" do palco, ou se trataria para o sr., efetivamente, de uma valorização maior da perspectiva jurídica e legal?
Habermas - Bem, eu veria isso mais como uma mudança de interesse que de atitude teórica. Acho -devemos pôr isso entre parênteses- que tudo isso comporta também um certo número de casos biográficos. Nos últimos 12 anos, vivi e ensinei num departamento de filosofia. Não podia ensinar sociologia. Não era o meu "job". Temos que levar em conta esses casos.
Por isso, dediquei-me mais à filosofia do que talvez tivesse feito aqui, no Instituto em Starnberg (Instituto Max Planck para a Pesquisa do Mundo Técnico-Científico), que se consagra às ciências sociais. É preciso considerar esses acasos. De resto, uma preocupação exclusiva ou, mesmo, primordial com questões de teoria moral seria, em última análise, estéril, se fizermos isso como filósofos, normativamente, e não empiricamente.
Freitag - Por exemplo, estudando crianças faveladas.
Habermas - Sim. Principalmente quando se adota um ponto de vista "kantianizante", como faço, a coisa se torna, muito cedo, não irrelevante, mas pobre em conteúdo. Quer dizer, fica difícil construir uma ponte para as questões práticas e políticas. A teoria do direito e, mais ainda, a teoria política e da democracia oferecem, naturalmente, quando se fica no quadro de uma determinada teoria normativa, um ponto de contato com as questões empíricas que a sra. salientou.
Mas é preciso, também, ver que mesmo essa filosofia do direito é, antes de mais nada, a reconstrução de uma autocompreensão normativa de ordens políticas modernas e, nesse sentido, não é "empírica", no sentido das ciências exatas.
No entanto, o fato de que, digamos, eu tenha precisado usar, pelo menos um pouco, materiais da ciência política e da sociologia, mostra que não estou fazendo essa teoria do direito como uma teoria puramente normativa, a exemplo de John Rawls, que, declaradamente, pretende analisar os fundamentos institucionais de uma sociedade justa. Ao passo que, embora eu estude de bom grado, numa ótica bastante crítica, a autocompreensão normativa do moderno estado de direito dos sistemas democráticos, eu a considero como algo que encontramos nas pressuposições de nossas práticas e não apenas como uma auto-compreensão esboçada normativamente. Tento apresentar essa teoria normativa como algo que se pode introduzir no contexto da ciência social, com todas as cautelas necessárias.
Por exemplo, podemos descrever, inclusive "reconstrutivamente", a evolução das constituições alemãs, digamos, nos últimos 125 anos, desde Bismarck, a partir dessa perspectiva, como uma história realizada com instrumentos mais precisos e com uma certa visada crítica. O que não impede que estejamos fazendo um trabalho primariamente normativo.
Freitag - O sr. criticou em "Facticidade e Validade", com toda razão, a meu ver, o fato de que a sociologia tenha se desviado das questões do direito. Quando li seu livro, pensei, com toda modéstia: "Ah, estou de novo na mesma linha que Habermas". Pois, num livro meu sobre Antígona ("Itinerários de Antígona", 1992)...
Habermas - ...Sim? Este livro eu não conheço...
Freitag - ...eu também tinha feito a observação de que a sociologia quase não se ocupa com as questões morais e normativas, com exceção dos clássicos: Durkheim, Weber e Parsons.
Habermas - É, mas a sra. está felizmente preparada para lidar com essas questões, graças a Piaget. Ele conseguiu ligar questões normativas e empíricas numa conjunção não-arbitrária, passível de reconstrução, e que pode ser trabalhada dos dois lados, empiricamente e numa perspectiva puramente normativa. Creio que Piaget foi influenciado pela matemática de Bourbaki. E ela é, também, de certo modo, uma ciência normativa. Normativa em outro sentido, como a gramática é uma ciência normativa.
Rouanet - Para voltar a Antígona, Barbara escandalizou os admiradores da personagem grega. Ele são muito numerosos e estão convencidos de que a moça foi uma heroína, que só ouvia a voz da "physis" e agia em consequência, quer isso conviesse a Creonte e à "polis" quer não. Ora, Barbara escreveu algo de chocante: segundo as categorias de Lawrence Kohlberg, Antígona estaria, no máximo, no estágio três...
Freitag - Ou seja, no nível da moralidade convencional. Eu tive uma briga até com meu próprio marido, tão sábio e inteligente... Ele achava que assim não dava, que isso era impossível. Mas, depois, eu encontrei um artigo de Kohlberg sobre a moralidade e a tragédia, em que ele também classifica Antígona nesse nível. Quem tinha razão, pelo menos para Kohlberg? Eu! (risos).
Habermas - Mas creio que Antígona defende realmente, do ponto de vista histórico, a moral da família contra a moral do Estado.
Freitag - É a interpretação de Hegel.
Habermas - Certo, na "Fenomenologia", a sra. quer dizer. É claro que, hoje em dia, não gostaríamos de defender nenhuma das duas morais. E uma das dificuldades dessa tragédia de Sófocles é que podemos interpretá-la de modo tão principista, que seria talvez possível derivar da peça uma crítica da moral do Estado...
Freitag - Como faz o dramaturgo francês Jean Anouilh.
Habermas - Acho fascinante o modo como a sra. abordou a questão. Já há tradução alemã?
Freitag - Estou preparando uma versão alemã. Que novas tendências intelectuais se desenham no final do século 20? O que nos resta, neste período que o sr. designou como a época do pensamento pós-metafísico, da moral pós-convencional e do capitalismo tardio, para usar sua terminologia anterior à "guinada pragmática"?
Habermas - Belo encadeamento de conceitos. Bem, como primeira resposta só posso dizer que o que mais me chama a atenção no atual panorama teórico é o que nos falta neste final do século 20.
O que nos falta é uma crítica do capitalismo, uma crítica diferente, com outras premissas, mas, ainda assim, uma crítica enérgica. Desde o fim da União Soviética, parece ter se difundido no mundo inteiro o pressuposto tácito de que, com isso, toda a tradição socialista e os argumentos críticos e céticos com relação ao capitalismo teriam perdido seu valor.
Devo confessar que, desde 1989, lamentei sinceramente, pela primeira vez, não ser economista. Estudei economia durante três semestres e, depois, esqueci tudo. Foi então que estudei Marx. Sempre tive consciência de que não saber economia era uma lacuna. Mas acho realmente que, hoje, com a globalização das relações de produção, surgiu uma situação bastante diferente. Foi só no período de pós-guerra que a Europa conheceu um Estado social verdadeiramente bem sucedido.
Por mais que se possa criticar esse Estado, dos mais diversos pontos de vista, é preciso reconhecer que, nas condições criadas por uma política externa, que obedecia a impulsos vindos de fora, e por uma Europa liberta do nacionalismo, conseguimos, pela primeira vez, um verdadeiro êxito na regulamentação e domesticação da economia capitalista -por meios administrativos, sem dúvida, mas, em todo caso, com base num processo decisório democrático.
Isso ocorreu na moldura do Estado nacional, ou seja, havia ainda uma dose suficiente de autonomia econômica para permitir aos governos nacionais implementarem, com relativo sucesso, suas políticas sociais, suas políticas públicas e de caráter social, por mais que elas variassem de país a país e tivessem características diferentes na Suécia, na Alemanha, na Inglaterra.
Tudo isso mudou desde meados dos anos 80. O Estado nacional, visivelmente, já não controla as condições produtivas de sua própria economia. Temos, hoje, uma globalização dos mercados financeiros...
Freitag - Sim, globalização é hoje a palavra-chave...
Habermas - ...uma globalização de mercados de capital, que afeta as condições de produção, provocando com isso uma generalização e globalização da própria produção. Segue-se que as condições de produção perderam seu caráter nacional. Não sou um técnico nessas coisas, mas tudo isso é muito sério.
Vemos como isso é sério quando acompanhamos o desenrolar dos nossos conflitos trabalhistas e verificamos que nossos custos salariais e os custos colaterais, que constituem um elemento importante de nosso sistema de segurança social, não nos permitem competir no mercado internacional de trabalho. Em consequência, fala-se cada vez mais na reestruturação do Estado Social, o que, para a maioria, significa simplesmente a sua desestruturação.
Mencionei esse tema muito sucintamente, para, respondendo à sua pergunta, dizer que o que falta, em primeiro lugar, é uma teoria que dê conta das tendências de globalização, mas não apenas no que diz respeito à manutenção da paz, ao narcotráfico, ao tráfico de armas, etc, mas justamente na esfera econômica.
Pelo menos na literatura à qual tenho acesso -e a teoria da dependência já não funciona- não vejo nenhum enfoque razoável para tematizar novamente essas coisas. Ou seja, para refletir sobre as capacidades políticas e de ação que precisam ser constituídas em nível global para domesticar esse sistema econômico, do mesmo modo que o fizemos na Europa, durante 40 anos, depois da guerra. Domesticar e eventualmente refazer este sistema econômico. Em vez disso, tudo se encaminha na direção contrária. Isso só foi um parêntese, para explicitar o que disse no início: falta alguma coisa!
Freitag - O sr. se referiu à teoria da dependência. Isso é, naturalmente, interessante para o nosso país, porque a teoria da dependência foi formulada principalmente por Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Cardoso não somente é sociólogo, como acaba de ser eleito presidente do Brasil, como o sr. sabe. O próprio Cardoso parece ter se distanciado dessa teoria. Mas quais são as suas objeções?
Habermas - Você sabe que eu não trabalhei neste campo. Não sou um crítico competente. Creio apenas que existe contra essa teoria uma certa evidência, controvertida, mas bem fundamentada. Ela consiste no fato de que o Primeiro Mundo pode sobreviver perfeitamente sem o Terceiro, ou antes, o que chamávamos de Terceiro Mundo. Isto é, a teoria da dependência é contestável, na medida em que contém ainda alguns elementos da velha teoria do imperialismo. Não é verdade que o hemisfério Norte precise verdadeiramente explorar o Sul para sobreviver.
Mas, voltemos às novas situações, que precisariam ser analisadas por uma teoria nova. Creio que, também em escala global, já surgiu uma situação semelhante à que temos em sociedades nacionais, por exemplo nos EUA, mas que já começa a manifestar-se também entre nós.
Ou seja, existiria uma "população excedente", segmentada em subclasses. Essas subclasses não têm mais nenhum potencial de ruptura. O que podem elas oferecer senão a autodestruição? É o caso de todas essas revoltas, em Los Angeles, por exemplo, não é mesmo? Elas constituem um modelo, a única possibilidade de ameaça, a ameaça de que elas possam autodestruir-se, ou algo no gênero.
Freitag - ... a ameaça de incendiar tudo!
Habermas - Sim, ou arrasar os quarteirões etc. Bem, como disse antes, entendo muito pouco dessas coisas. Por isso, sinto muito intensamente as minhas deficiências. Não conheço abordagens verdadeiramente interessantes sobre isso.
Talvez elas já existam, quero dizer, uma abordagem que se esforce por analisar, metodicamente, as consequências devastadoras dessas políticas neoliberais que, agora, estão sendo aplicadas internacionalmente, inclusive nos países sul-americanos, e que nos permita refletir sobre os próximos passos.
Sem dúvida, não se pode fazer em escala internacional o mesmo que se faz em escala nacional. Mas vejo que o que fizemos em escala nacional, ou seja, o sistema de segurança do Estado Social está sendo demolido. Isso deve interessar menos a países como o seu, porque são nossos problemas, mas tudo está interligado.
Parece-me, portanto, que podemos dizer, em todo caso -trata-se, naturalmente, apenas de uma proposta processual-, que as instituições políticas supranacionais devem ser fortalecidas em sua capacidade de ação e que -isto é quase uma temeridade- elas devem ser abertas a uma programação democrática, não é verdade? Não me perguntem como isso pode ser implementado. Mas, se não se faz algo nesse sentido, vejo um cenário relativamente negativo. Em suma, vocês me perguntaram sobre as tendências do final do século 20...
Freitag - Sim, exatamente.
Habermas - Precisamos urgentemente de uma teoria político-econômica que substitua a que prevaleceu até agora e que, de resto, nunca foi especialmente forte para a economia global. Ela sempre foi mais forte para explicar as economias nacionais.
Continua à pág. 6-7

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