São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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A HISTÓRIA NEGATIVA

BARBARA FREITAG; SERGIO PAULO ROUANET
ESPECIAL PARA A FOLHA

SERGIO PAULO ROUANET
A seguir, Jürgen Habermas fala à Folha sobre as pesquisas que tem realizado, inclusive uma série de conferências sobre a filosofia alemã deste século, analisa as correntes intelectuais contemporâneas e discute as principais tendências sociais e políticas da atualidade.

Barbara Freitag - Em primeiro lugar, quais são suas principais áreas de pesquisa, agora que o sr. se aposentou, ficando assim livre para novas atividades intelectuais?
Jürgen Habermas - No momento, estou trabalhando em pequenas coisas. Estou me deixando envolver mais que antes -quer dizer, antes do aparecimento desse livro sobre a teoria do direito e da democracia ("Facticidade e Validade)- pelas reflexões dos juristas e dos filósofos que fazem teoria política. Por isso, ocupo-me agora com as questões normativas da ordem internacional. Quer dizer, sempre com a distância que caracteriza o filósofo, não é verdade?
Estamos comemorando o segundo centenário da publicação da "Paz Perpétua, de Kant, o que oferece uma oportunidade para repensar a crítica de Carl Schmitt sobre a "juridização" ("Verrechtlichung") do estado de natureza e verificar, por exemplo, em que medida essa crítica contém idéias kantianas. É um exemplo dessas questões normativas. Ou os temas do multiculturalismo, do direito de asilo, sobre os quais me manifestei nos últimos anos.
Freitag - Principalmente no que diz respeito à Alemanha ou também no que se refere ao debate conduzido nos Estados Unidos?
Habermas - Bem, participei, em janeiro de 1995, de uma reunião em Stanford (Califórnia), e naturalmente discutimos também, com bastante vivacidade, os problemas do multiculturalismo (entenda os conceitos às págs. 6-6 e 6-7) americano, que são realmente sérios, comparados com os nossos. Não se trata, portanto, apenas de uma problemática alemã, e, sim, de questões normativas em geral. Nos Estados Unidos, a discussão sobre a ética discursiva vai mais longe que entre nós. (Habermas levanta-se e vai buscar duas separatas em outra mesa). Tomem, eu lhes dou isso de presente. (Oferece-nos os dois textos autografados, com as dedicatórias já prontas). É uma discussão com John Rawls (saiba quem é quem às pág. 6-8 e 6-9). Terei, a seguir, um debate com meu amigo Charles Taylor.
Portanto, esse é um tema -as questões normativas da teoria política, mas também as questões da ordem internacional. Um outro tema... bem, são as novas conferências que darei em Chicago, versando sobre a história da filosofia alemã no século 20. Em algum momento, nos próximos anos, elas se transformarão em livro. Considerarei três gerações. A primeira, naturalmente, é a geração de Frege, Husserl e Dilthey, um pouco o jovem Cassirer. A segunda geração é a de Carnap, Heidegger e Wittgenstein. E a terceira geração é a de Gadamer, Popper e Apel.
Freitag - Gadamer acaba de fazer 95 anos. Li, ouvi e vi muitas entrevistas que ele vem dando. Está inteiramente lúcido.
Habermas - Sim, sim! Nós fomos visitá-lo em Heidelberg. Ele ainda está... bem, com a cabeça ótima, e com muita mobilidade.
Freitag - Numa entrevista dada a "Focus", o entrevistador disse que Gadamer lhe ofereceu um café que ele mesmo fizera.
Habermas - Sim, sim! (risos).
Sergio Paulo Rouanet - A propósito, recordo-me do seu ensaio "A Aspiração de Universalidade da Hermenêutica", no qual o sr. rejeita a posição de Gadamer de que não podemos transcender o horizonte da nossa tradição. As duas posições permanecem o que eram há anos? Gadamer continua defendendo a tese de que o horizonte da tradição não pode ser ultrapassado?
Habermas - Bem, é difícil dizer. Nesse ponto, que considero decisivo, Gadamer é flexível demais para se comprometer de modo unívoco. Sim, o ponto decisivo -e também Apel o criticou novamente nesse aspecto- é saber se podemos derivar consequências particularistas do seu enfoque hermenêutico. Ou seja, se apesar de todos os nossos esforços de compreensão, nós permanecemos de tal modo partes de nossa tradição que... sim, que, em última análise, não podemos assumir nenhuma distância crítica com relação a essa tradição.
Mas minha impressão é que Gadamer prefere não passar para o campo dos contextualistas. Ele não quer ser considerado um contextualista. Mas, ao mesmo tempo, continua fiel, num sentido heideggeriano, à tese da historicidade da verdade. Ou seja, a verdade como acontecimento ("Ereignis"), a verdade como destino ("Geschick"). E, por isso, acho que ele continuaria a não aceitar, hoje, a minha objeção de anos atrás, segundo a qual devemos ter a possibilidade de criticar os preconceitos vinculados pela tradição.
Rouanet - Isso tem a ver, talvez, com sua idéia de uma apropriação seletiva da tradição, segundo a qual não devemos, justamente, aceitar todos os conteúdos dessa tradição. Num país como a Alemanha, a tradição é uma questão tão delicada, que precisamos manter uma atitude seletiva com relação a ela. Não é mesmo?
Habermas - Sim, sem dúvida.
Rouanet - A tradição iluminista da Alemanha, sim, mas não a contra-iluminista.
Habermas - Sim, sim. De qualquer modo, acho que um elemento da condição moderna, da nossa situação existencial moderna, é que devemos, pelo menos, ter a possibilidade de questionar as tradições. E penso que a história nunca pode ser verdadeiramente nossa mestra num sentido afirmativo. Na medida em que podemos aprender alguma coisa da história, só aprendemos a partir de experiências negativas. Ou seja, descobrimos em 1945, com horror, tudo o que se passou de errado. Aprendemos também, em formato pequeno, quando algo dá errado, e nesse momento, um pano-de-fundo tradicional, até então aceito ingenuamente, torna-se problemático. Nessas circuntâncias, devemos ter a possibilidade de recuar, como o sr. diz, para sondar a situação, e também, em última análise, para decidir que tradições queremos continuar e quais as que não queremos.
Freitag - Bem, voltemos aos seus projetos.
Habermas - Certo. O terceiro projeto -como vêem, todos são de pequeno porte- é efetuar "retoques" ("reparaturarbeiten") na teoria pragmática da linguagem. São questões analíticas fundamentais da teoria da significação, e, portanto, da teoria da verdade. Polemizo, um pouco, nesse contexto, com Donald Davidson. São ensaios desse tipo que tenho em mente.
Freitag - Esse conceito de "retoque" tem a ver, justamente, com uma pergunta que gostaria de fazer. Considerando que sou uma leitora entusiasta dos seus livros, desde "Estudante e Política", de 1961, e que...
Habermas - Muito antes não pode ter sido... (ri)
Freitag - Como o sr. mesmo avaliaria sua obra? Tudo continua atual nela ou será que algumas passagens precisam ser reformuladas, à luz de novos paradigmas teóricos e de transformações sociais e políticas? O sr. próprio falou em "retoques" em sua teoria pragmática da linguagem...
Rouanet - Talvez eu pudesse precisar ainda mais a pergunta. Fala-se, na filosofia, de um "linguistic turn" (guinada linguística). Pode-se falar de um "communicative turn" em seu pensamento? Por exemplo, em "Conhecimento e Interesse" não havia grande ênfase na dimensão comunicativa. Mas, depois, veio uma guinada comunicativa, sobretudo em seu confronto com Niklas Luhman, em 1971, com "Observações Preparatórias para uma Teoria da Competência Comunicativa". Pode-se falar, então, de um "communicative turn" em sua obra?
Habermas - Bem, acho que um autor deve deixar a seus leitores julgamentos desse tipo. Mas, naturalmente, podemos falar sobre essas revisões. Sim, "communicative turn". A terminologia não importa muito. Mas "pragmatic turn" seria melhor. É verdade, isso apareceu com mais força no início dos anos 70, ainda que o terreno já estivesse um pouco preparado pela recepção da hermenêutica. "Conhecimento e Interesse" já era um pouco uma tentativa de entender Freud a partir da situação analítica, como uma conversa entre terapeuta e paciente. Mas é certo que, naquela época, nos anos 60, eu seguia mais fortemente um veio histórico-filosófico, digamos assim, da antiga teoria clássica e dava prioridade a tudo aquilo que, naquele momento, aludisse a grandes questões supra-individuais.
Isso desapareceu e foi substituído pela idéia de que tudo o que temos são contextos comunicativos de caráter intersubjetivo, além, é claro, de instituições que tenham esse caráter intersubjetivo. Portanto, "guinada pragmática". Quanto ao que hoje precisasse ser mudado, acho que as coisas que fiz desde a "Teoria da Ação Comunicativa" continuam a me parecer plausíveis, digamos, em sua arquitetônica, e eu as defenderia. As objeções feitas a essas idéias não são tão convincentes a ponto de forçar-me a fazer grandes revisões.
Por outro lado, pelo menos eu o espero, a gente sempre continua a aprender. E penso que a filosofia do direito que expus em "Facticidade e Validade" também teve algo de novo. Ela contém uma revisão da idéia, que eu ainda sustentava na "Teoria da Ação Comunicativa", de que se pode distinguir entre o direito enquanto instituição e o direito enquanto meio ("Medium"). Isso se tornou, depois, problemático para mim. Discuto também, com mais ênfase nesse último livro, a sociedade civil. Embora essa idéia já tivesse aparecido antes.
Freitag - Por exemplo, em sua tese de livre docência, de 1962, a "Mudança Estrutural do Espaço Público".
Habermas - Sim, exatamente. Agora, os "retoques". A gente sempre descobre coisas pouco claras. Portanto, em primeiro lugar, críticas, obscuridades, mas também teorias concorrentes. Por exemplo, Davidson, que é, hoje, a julgar por meus estudantes, o grande herói, não é mesmo? A gente lê mais atentamente essas coisas e se sente um pouco desafiado a precisar seus próprios trabalhos à luz dessa concorrência.
Freitag - A entrar, por assim dizer, num discurso teórico.
Habermas - Sim. Tenho, além disso, a impressão de que as reflexões pragmático-formais sobre a teoria da significação não tiveram uma recepção séria na América. E isso, também, oferece uma oportunidade para trabalhar essas coisas mais exatamente e, por assim dizer, em formato menor, para desenvolvê-las com maior precisão. É isso que chamo de "retoques".
Continua à pág. 6-6

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