São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Não matarás na "Evangelium Vitae"

HÉLIO BICUDO

Quando de sua segunda visita ao Brasil, o papa João Paulo 2º, não obstante instantes solicitações de representantes do clero local para que fizesse uma declaração contrária à pena de morte, pois estávamos então em momento difícil com uma emenda constitucional em curso, sua santidade nada disse a respeito, sob o pretexto de que suas manifestações, estudadas e redigidas em Roma, não poderiam, de forma alguma, ser alteradas...
Depois, vem o novo Catecismo, a abrir uma fresta para o que viria mais tarde acontecer, com a edição da encíclica "Evangelium Vitae", em que a pena de morte é aceita, claramente, como meio de defesa social.
Em verdade, ao referir-se à pena de morte, na ótica de uma Justiça Penal sempre mais conforme à dignidade do homem, assevera a encíclica que se deve dar grande atenção ao respeito à vida, inclusive àquela do réu e do agressor injusto, na linha de que o mandamento "não matarás" tem valor absoluto quando se refere à pessoa inocente.
Como, realmente, do mandamento "não matarás" pode-se chegar ao "podes matar"?
A encíclica considera, entretanto, que continua válido o princípio indicado no novo Catecismo, segundo o qual "se os meios incrementes são suficientes para defender a vida humana do agressor e para proteger a ordem pública e a segurança pessoal, a autoridade limitar-se-á a esses meios, porque melhor correspondem à condição concreta do bem comum e não mais conformes à dignidade humana".
E acrescenta, numa visão distorcida da realidade, que nos dias de hoje os casos em que se pode adotar a pena de morte são muito raros e praticamente inexistentes, devido à organização sempre mais adequada das instituições penais (cf. Evangelium Vitae, ed. Piemme, 1995, págs. 115/116).
Ora, quando João Paulo 2º, com todo respeito e consideração que se deve ter com um sucessor de São Pedro, afirma que a vida é monopólio dos inocentes, ele traz ao nível da discussão uma questão de tal subjetividade que, segundo um dado momento e um dado lugar, segundo uma dada sociedade, pode-se matar um homem, desde que ele, segundo uma dessas circunstâncias, não seja considerado inocente.
Se adotarmos a linha de raciocínio aberta pela encíclica -e que não se compatibiliza com a doutrina da Igreja enquanto povo de Deus- vamos encontrar justificativas -e aqui não vai exagero algum- para os grandes massacres que a história noticia. E, por igual, nas execuções individuais que ocorrem, quase corriqueiramente, no mundo de hoje, sejam legais, sejam extralegais.
Ora, se é evidente que não podemos atribuir ao sucessor de São Pedro semelhante linha de pensamento, como encarar, então, as afirmativas a propósito da pena de morte e que estão expostas na encíclica "Evangelium Vitae"?
Nem se argumente com a legítima defesa, quando ao se repelir injusta agressão, atual ou iminente, e se atua com moderação, não se comete delito. É que o Estado, quando impõe a pena de morte, age "a posteriori", quando o bem jurídico, objeto da defesa legítima, já foi destruído. Trata-se, na verdade, não de um ato de defesa, mas de um ato de vingança: o Estado que pune o homicídio, comete um homicídio.
E por igual, não vale o argumento do aperfeiçoamento do aparelho judiciário com o aperfeiçoamento das decisões dos juízes ou tribunais, porque todos sabemos a relatividade das decisões humanas. Quantos inocentes já pagaram por crimes que não cometeram? E bastaria a eliminação de um só deles, para que não tivéssemos a ousadia de raciocinar com o incerto para justificar uma posição que o mundo, no momento atual de sua evolução, não pode mais admitir.
A vida é um bem supremo concedido ao homem. E não se pode dar ao homem, em momento algum -seja a que pretexto for- o poder de suprimi-la. É, pois, pelo menos incoerente, condenar-se o aborto e a eutanásia e concordar-se com o assassínio praticado pelo Estado, pois a consideração de inocência não será de modo algum adotada por Deus, que concede a vida, mas pelo homem, que é no mínimo falível.
Por último, a encíclica, expressão da hierarquia católica, cujo ápice o papa ocupa, e não da Igreja, que é o conjunto do povo de Deus, não pode ser vista como um mandamento divino, inclusive porque não emana da revelação, mas de um ato de vontade.
Não se pode, pois, deixar de expressar, pelo menos, a perplexidade de quantos vêm dedicando seus dias de luta pela vida, diante de uma posição que, ao invés de alçar-se na ponta da flecha da evolução, se deixa cair por terra, esquecendo-se de que a solidariedade entre os homens não se compadece com o egoísmo, tanto mais quando qualificado pela presunção de que a nós é deferido o poder da decisão suprema de quem deve e de quem não deve morrer.
Se a mãe não o pode fazer, com o filho que traz no ventre; se ao doente terminal não se concede a possibilidade de -ele ou terceiro- pôr termo ao seu sofrimento; como conceder ao Estado o poder que só a Deus se pode reconhecer?

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