São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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O drama de São Paulo

BARBARA GANCIA

Quarta-feira, 12 abril, 1995: o dia de trabalho do prefeito Paulo Salim Maluf, 63, começa antes do estipulado. Para o xerife da maior cidade do hemisfério, isso é ar quente. A primeira reunião do dia, na sede da prefeitura, no cinzento Parque Dom Pedro -que o prefeito tanto despreza-, é com Antonio Ermírio de Moraes. Foi antecipada das 8h para as 7h30 a pedido do empresário. Esta manhã, Maluf não está interesssado na opinião do Ermírio barão do cimento, mas no que o Ermírio presidente da Fundação Beneficência Portuguesa tem a dizer sobre o PAS. A sigla, Plano de Assistência à Saúde, designa mais um inovador e potencialmente explosivo projeto de lei da prefeitura.
De imediato, Maluf está se lixando para o "corporativismo" de médicos municipais. A maioria não aceita a proposta do PAS, de receber contraprestação de serviços. O prefeito tem de se ater a outro objetivo, mais urgente. Convencer Ermírio de que o PAS é genial e convidá-lo a integrar o conselho que auditará o plano.
Gravata collorida
De terno cinza claro, camisa branca e corajosa gravata Hermès em tons rosados, Maluf deixa sua casa, na esquina das ruas México e Costa Rica, pontualmente às 7h, a bordo de um Opala chumbo metálico.
É o começo do outono paulistano, o que, no calendário do prefeito de São Paulo, marca o fim da "Operação Enchente" e o início da "Operação Inverno".
Os jornais do dia trazem manchetes sobre a polêmica lei antifumo que o prefeito tenta implantar na porretada. No dia anterior, o decreto de lei fora julgado ilegal pela juíza da 12ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, Ana Amazonas Barroso Carrieri.
Os jornais trazem também manchetes sobre os prenúncios de um inverno esfumaçado pelo monóxido de carbono dos 15% de automóveis a mais que foram atirados nas vias públicas pelo Plano Real.
Apesar da resistência aos seus projetos e dos problemas recorrentes de uma "cidade-Estado" com as proporções de Sampa, o prefeito está empolgado. Como de costume. "Não perdi um só projeto de lei na Câmara de São Paulo", diz. "A ampliação da Faria Lima, por exemplo, foi assinada ontem, depois de quase um ano e meio de batalha. Ganhamos por 55 votos a zero, com o apoio de todos os vereadores do PT."
Tem mais, claro. Com Paulo Maluf, sempre tem mais: "Nesta gestão, nós ainda não enfrentamos uma única greve".
De início, a reunião com os assessores e Ermírio é a portas fechadas. Estarão eles tramando uma forma de aplicar o bisturi nas artérias carótidas dos médicos da rede pública?
Assim que a entrada ao gabinete é liberada a esta repórter, sou confrontada com um espetáculo inédito ao eleitor paulista: Paulo Maluf está quieto, repito, quieto, manso, à cabeceira da mesa, ouvindo Ermírio falar. O prefeito permanece mudo, humilde, enquanto José Knoble, presidente da Escola Paulista de Medicina, opina. E continua prestando atenção sem dar um pio, durante exposição feita pelo secretário de Saúde, Getúlio Hanashiro. Felizmente, o tom da audiência não denota nenhuma ameaça às goelas dos médicos paulistanos.
Maluf finalmente fala. Discorre brevemente sobre a eficiência do sistema self-service que implantou no Hospital de Campo Limpo. "O sistema é econômico. Se o sujeito se serve, não sobra comida no prato." Subitamente, levanta, dá uma ordem à secretária no interfone e, antes de voltar à mesa de reunião, aproveita para sapear a tela de um computador, sempre plugado nos movimentos do mercado financeiro.
O prefeito dirige-se ao seu secretário de Saúde: "De quantos micros precisa um hospital médio?" Resposta: "Cerca de 40". A calculadora alojada em alguma parte do cérebro de Paulo Salim age rápido: "Sei, então são US$ 60 mil por hospital".
"Olha, Getúlio, estou com uma concorrência aí para implantar micros nas escolas. Inclui os hospitais nisso, fala com o Marcelo". Fim de papo. Fim de reunião.
Máquina de salsicha
Uma bronca na secretária mais tarde, Maluf agora está no saguão da prefeitura, rodeado de jornalistas que anseiam por comentários sobre a sentença da juíza. Frases profissionais espocam de sua boca, feito salsicha saindo da máquina: "A prefeitura irá recorrer da decisão"; "Está provado que 50% dos fumantes morrerão de doenças relacionadas ao fumo"; "Olá, minha linda, como vai, meu amor?"
Uma declaração aqui, um charme ali e embarcamos no Opala oficial rumo ao Cingapura, projeto de urbanização de favelas situado ao lado da subida do boxe do autódromo de Interlagos. "Experimente falar mal do prefeito Maluf aqui no Cingapura", provoca o xerife.
Ele pergunta sobre o andamento da obra e, depois, bate palmas e entra sem aguardar réplica, no apartamento da família que hoje está ocupando uma morada. "A senhora colocou revestimento no chão? Ficou muito bom."
Sobre o autódromo de Interlagos, ele sai de fino: "Sei que alguns pilotos reclamaram das ondulações durante o GP do Brasil de Fórmula 1", concede. "Mas a FIA, Federação Internacional de Automobilismo, aprovou o autódromo com laudo técnico, que eu mostro a quem quiser ver. Na Argentina os pilotos também chiaram mas as pistas européias têm ondulações".
A próxima inspeção é no córrego das Águas Espraiadas, na região do Brooklin e Campo Belo. "Trata-se da maior obra de urbanização da América Latina". Naturalmente. "Tiramos, sem problema social, 30 mil pessoas da área e é complicado fazer isso. Você tem de cadastrar família por família e não pode deixar entrar de novo". Puxa, xerife!
Depois de cobrar o cronograma da obra, ele posa para fotos diante do córrego em construção. E, frente aos repórteres presentes, aciona novamente a máquina de fazer salsicha: "Precisa chamar uns petistas aqui para deitar na frente dos tratores, senão, vocês jornalistas não falam da obra e ninguém fica sabendo o que a prefeitura está fazendo pela cidade"; "Esta obra vai custar o equivalente a sete avenidas Faria Lima"; "Olá minha linda, como vai, meu amor?"
Mãe mais que perfeita
De volta ao Opala, Maluf explica, sem nunca meter pés pelas mãos, um de seus maiores rompantes malufescos: ter batizado um túnel da cidade com o nome da própria mãe, dona Maria Maluf. "São Paulo costuma homenagear seus vultos e eu tive a ventura de ter tido a mãe mais perfeita que alguém pode ter", diz, profissionalmente emocionado. Lágrimas me saltam dos olhos. "Foi uma mulher exemplar, viúva aos 37 anos apenas, dedicou a vida aos filhos e a obras de caridade".
Estamos agora do outro lado da cidade, no tradicional bairro do Brás. O prefeito abre a porta do Opala, ajeita a gravata e mergulha de queixo em pé, em meio a uma multidão de agradecidos negociantes. Veio inaugurar um camelódromo.
O dispositivo da emoção fabricada ainda está ligado a pleno vapor. Maluf faz um apaixonado discurso diante de comerciantes "formais" e outros "informais".
E manda ver no "nóis vai, nóis vem": "Têim genti cum calo nos pé, têim genti cum calo nas mão, cumu nóis. Mais têim genti qui têim calo na língua, qui só sabi recrâmá! Nóis trabáia e num recrâma!"
Diante de meu estupor, o prefeito dá uma aula sobre a razão da súbita mudança no linguajar: "Faço discurso para a platéia. Se vou dar uma palestra sobre economia na USP, evidente que a maneira de me expressar será outra", diz. "Governar é um gesto de didatismo contínuo".
Depois de enfiar a terceira pastilha Halls sabor limão na boca, Maluf manda o motorista, Salvador, tocar para a prefeitura.
É hora do almoço e a audiência com o secretário estadual de Meio Ambiente, Fábio Feldmann, será pautada por um franguinho com bacon muito do sapeca. "Este prédio deveria ser museu, nem cozinha tem. A comida tem de vir de fora", reclama da herança petista.
O roteiro do almoço combina com o cardápio. Entre uma piada sobre árabes e judeus e outra, prefeito e secretário discutem a poluição do ar. À saída, Maluf autoriza Feldmann a ocupar, com escritórios da Secretaria de Meio Ambiente, um prédio que pertence à prefeitura. "Quantos metros tem esse prédio, para eu saber o tamanho do favor que estou te fazendo?" Alguém apita uma cifra e o xerife puxa o gatilho: "A US$ 1.000 o metro, Fábio, você está ganhando de presente mais de US$ 1.000.000".
Uma assinatura de abono salarial depois, chega a hora da perfumaria. O prefeito recebe em seu gabinete o secretário municipal de Cultura, Rodolfo Konder, e o conselho que dirige o Teatro Municipal.
Maluf agora está no canto mais chique de seu ambiente. A máquina dispara salsichas para todo o lado:"Essa camerata que está aqui no papel é o quê, hein, Sabine (Lovatelli)?"; "Como está o nosso sopro?"; "Vocês contrataram o spalla (violinista) que eu mandei?"; "Olá minha linda, como vai meu amor?"
São 17h e o expediente do prefeito de São Paulo está terminando. Daqui a 45 minutos, ele estará no altar da igreja Nossa Senhora do Brasil, diante de 500 convidados, assistindo missa pelos 40 anos de casado com a mulher, dona Silvia -dez cigarros Kent ao dia. Com piteira Acquafilter.

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