São Paulo, domingo, 30 de abril de 1995
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Um instrumento na mão e uma idéia na cabeça

FERNANDO SALEM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu bisavô era compositor de operetas, revistas e marchinhas de Carnaval. Para sobreviver, tocava piano nos cinemas do início do século. Traduzia as emoções do cinema mudo do seu mundo interno para as platéias. Seguia atento a ação do filme como se estivesse desvendando uma partitura mágica. Imprimia seu ritmo intuitivo às tragédias, pastelões frenéticos e romances.
Mais tarde, na fase entre o cinema mudo e o falado, chegou a fazer sonoplastias ao vivo. Foi o primeiro no mundo e se tornou mestre nisso. Cavalos, trovões e telefones soavam graças aos badulaques e engenhocas mecânicas que o meu bisavô chacoalhava atrás da tela. Através de um megafone, artistas líricos cantavam e faziam as "falas", com o fundo musical de uma orquestra de câmera. Durante três anos, de 1913 a 1916, meu bisavô dirigiu seus próprios filmes e os sonorizou com sua poética tecno-lúdica. Um músico a serviço da imagem.
Um enorme incêndio destruiu o cinema e meu bisavô se viu desolado e arruinado financeiramente. Sem grana e sem sons, silenciou seus sonhos em 1917.
Na qualidade de bisneto, passei os últimos quatro anos me multiplicando em três atividades: direção musical no Vexame (espetáculo que simula um programa de auditório com suas canções "mundo-cão", publicidade fuleira e ícones de TV); direção musical no "Fanzine" (extinto programa de entrevistas da Cultura) e trilhas sonoras para abertura de programas e teatro. Quando acabou o "Fanzine" e eu ainda metabolizava a interrupção de um programa diário, percebi o óbvio: já não podia pensar música sem imagem. "A televisão me deixou burro demais".
No Vexame, o exercício escrachado do simulacro. Linguagem de TV exagerada, hiperdimensionada para o palco. No "Fanzine", uma banda camaleônica com um papel editorial e a pesquisa constante de repertório. Canções associadas a uma pauta multiplicavam seu sentido e criavam indagações. De Paulinho da Viola, Lulu Santos, Tom Zé, Jards Macalé, Frejat, Herbert Vianna e Luiz Melodia a Odair José, Sula Miranda e Jerry Adriani, mais de 200 artistas se misturaram à banda, na sua democracia anárquica.
A TV empregou muitos músicos em toda sua história: Simonetti, Ari Barroso, Sílvio Mazzuca, Chico Dorce. Orquestras geniais e músicos ajudando a criar programas bem malucos.
Músicos têm, de fato, uma enorme colaboração a dar para as TVs. O papel de direção musical ainda é pouco explorado. A linguagem musical pode definir soluções ágeis e inventivas para programas que ainda não nasceram.
O espaço hoje é pequeno, mas os magos do som dão seu toque de genialidade e humor. A explosão criativa e o improviso "nonsense" de Derico, o pequeno grande Caçulinha, o swing da banda Cia. de Música, Inezita Barroso, Marcos (o ex-"paixão"), Záccaro, Robertinho do Acordeon, Bira, Rubinho, Osmar, Miltinho, banda Fanzine e maestro Zezinho.
Como meu bisavô, esses músicos maravilhosos e seus instrumentos fazem esse eletrodoméstico místico propagar imagens e emoções parabólicas com muito mais magia.

FERNANDO SALÉM é músico e escreve mensalmente no TV Folha a coluna "Tecla Sap", sobre música na televisão.

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