São Paulo, sexta-feira, 5 de maio de 1995
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Tulipas, moedas e reformas

JOSÉ LUIS FIORI

``Em resumo, o episódio eufórico está protegido e sustentado pela vontade dos que nele participam, com o objetivo de justificar as circunstâncias que os estão enriquecendo. E também está protegido pela vontade de ignorar, exorcizar ou condenar aqueles que expressam suas dúvidas."
John Kenneth Galbraith, ``A Short History of Financial Euphoria".

John Galbraith publicou recentemente um livro interessante sobre a forma invariável que assumem a euforia e o pânico nos ciclos de especulação financeira que se sucedem na história do capitalismo, desde o de 1630, na Holanda, quando o surpreendente objeto da valorização foi nada mais do que a tulipa, até o que culminou no México em 1994.
Em todos os casos, o sucesso da escalada especulativa escudou-se na criação de uma dívida garantida por algum tipo de ``âncora", na qual um número crescente de pessoas acredita durante algum tempo.
Na hora do sucesso, a euforia sempre se autoprotegeu acusando os críticos de catastrofistas. Na hora da crise e do pânico, entretanto, os gênios financeiros desapareceram, os críticos foram esquecidos e encontrou-se, invariavelmente, algum responsável externo aos mercados pela desgraça coletiva.
Todos os obstáculos -mesmo os de natureza política- que abalaram a euforia do Plano Real são produtos de sua própria engenhosidade. Afinal, sua principal originalidade histórica não está no fato de ter engendrado uma euforia consumista, mas no de que a indução da euforia produziu um resultado fora do mercado, absolutamente original: o apoio eleitoral da população brasileira a uma coalizão política extremamente ampla e que se mostrou extraordinariamente coesa enquanto foi possível conjugar o feijão com os importados e os ganhos financeiros.
E agora, no momento que Galbraith chamaria de ``ressaca" do experimento, não se deve estranhar o desencanto dos investidores e consumidores, mas tampouco nos devem espantar as dificuldades enfrentadas por seu produto mais original: a descoordenação ou mesmo fratura interna da coalizão política que se sustentou no real.
Os impactos da inacabada crise mexicana e de suas sequelas foram muito poderosos. Hoje, mesmo os analistas mais esperançosos reconhecem que o Plano Real, do ponto de vista de sua estrutura lógica, ``já acabou", ``sofre de fadiga" ou simplesmente ``precisa ser reformulado".
Graças a Deus, os jovens que o conceberam não sentiram necessidade de suicidar-se, mas tampouco se retrataram. Mas, no plano estrito da política de estabilização, tiveram de abdicar da sua obra.
Entretanto, à medida que a expectativas pessimistas seguem-se reações reticentes ou defensivas, a tendência é de que aumente a distância entre o comportamento dos agentes e as intenções da autoridade econômica.
Sendo assim, como a estratégia econômica mais geral segue sendo essencialmente a mesma, só resta ao governo a batalha de Sísifo para recompor a cada momento sua credibilidade econômica externa. E por mais que insista, corretamente do ponto de vista do interesse brasileiro, em dissociar o Brasil do ``risco América Latina", percebe que está perdendo a batalha das expectativas.
O complicador, aqui, é que talvez não haja outra alternativa para esse governo, dentro da estratégia econômica e política que construiu a partir do real senão seguir a sugestão de Camdessus: insistir e insistir na mesma direção, apostando que as condições da estabilidade se recomporão por si mesmas.
À luz dessa opção de aprofundamento da mesma aposta é que deve ser compreendida a volta da preocupação com a política no argumento dos economistas e da imprensa em geral. A nova fantasia passou a girar em torno dos efeitos benéficos imediatos das reformas constitucionais, capazes de salvar o real.
Assim, o fantasma voltou a ser a demora ou uma eventual oposição de um Congresso Nacional tomado pelo ``corporativismo" e pelo ``fisiologismo". Entretanto, nada disso é novo nem pode estar surpreendendo aos formuladores da engenharia política do real.
O problema, de fato, está noutro lugar: na desmontagem precoce da fantasia coletiva e na necessidade, mais cedo do que se esperava, de atribuir às reformas da Constituição virtudes que elas de fato não possuem. O Congresso tem sido agilíssimo e em geral tem dado apoio entusiástico às idéias do governo. Mal que mal está presidido e liderado pelos principais aliados da coalizão governamental e pelos defensores mais entusiastas das reformas constitucionais.
Ocorre que, seja pelo tempo indispensável para seu tratamento pelo Legislativo e sua implementação, seja porque os investidores já sabem que reformas desse tipo não foram suficientes para dar ``governabilidade" ao México, fica muito difícil convencer a população de que tais reformas tenham algo a contribuir de imediato para conter a inflação. Toda essa tempestade em copo d'água tem muito mais a ver com o jogo de sombras em que se transformou o mundo das expectativas econômicas.
No essencial e do ponto de vista dos cenários econômicos imediatos, as reformas têm muito pouco para oferecer. Mais importante do que isso, nos meses de maio e junho deverá ser o debate da desindexação em plena aceleração inflacionária.
Porém, no longo prazo, o que mais deve preocupar-nos é a hipótese de que todas as reformas sejam, cedo ou tarde, devidamente aprovadas e aplaudidas e, apesar disso, nada aconteça de novo a não ser alguns bons negócios em meio a uma estagnação prolongada, sem que esteja excluída a hipótese de que venha acompanhada de inflação. Seria uma nova e irremediável frustração coletiva.
E, nesse caso, com o passar dos anos, ainda quando não fosse difícil explicar aos nossos netos o parentesco entre uma flor e uma moeda, ou mesmo entre uma tulipa e um presidente da República, seria muito mais difícil explicar a relação que um dia acreditou-se haver entre a estabilidade da moeda e as reformas.

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