São Paulo, sexta-feira, 5 de maio de 1995
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Falta paz na saúde em São Paulo

REGINA RIBEIRO PARIZI CARVALHO

Recentemente, neste espaço da Folha, o secretário municipal da Saúde de São Paulo, Getulio Hanashiro, rotulou de ``cães modernos" os opositores ao PAS (Plano de Atendimento à Saúde) da Prefeitura de São Paulo. A comparação nos parece apropriada, pois o cão tem sido apontado pela história da humanidade como o melhor amigo do homem.
Os cães desempenham função socialmente reconhecida, de zelar pelo patrimônio e pela vida dos cidadãos. Além disso, a prudência recomenda que é sempre pertinente verificar por que os cães ladram.
A saúde, definida na Constituição brasileira como dever do Estado, garante a cidadania, impulsiona o trabalho, faz aumentar a produção de conhecimentos, bens e serviços e traduz o nível de desenvolvimento de uma nação.
A medicina tem a saúde como seu princípio fundamental e por isso deve ser exercida a serviço do ser humano e da coletividade, sem discriminações ou fins mercantilistas. Esses preceitos encerram o direito à vida em sua plenitude, questão ética que deve nortear qualquer sistema, plano ou ação de promoção e recuperação da saúde.
O PAS se apropria desse discurso sustentado por competente esquema de marketing capaz de ludibriar setores minoritários da sociedade. O lançamento da proposta teve início com a troca de secretários e credenciou o atual como profeta das boas novas: um ``plano de saúde para pobres", que ainda promete aos funcionários serem donos do seu próprio negócio, sem chefes ou patrões, com melhor remuneração, justamente no momento em que o prefeito retirou o referencial de reajuste salarial por eles conquistado em gestões anteriores.
À população, miserável e sem posses, mais do que a certeza de obter atendimento digno em saúde é oferecida a chave da modernidade, através de cartão plástico, símbolo propagandeado como atestado de cidadão do Primeiro Mundo, que dá acesso a uma vida repleta de privilégios e felicidade.
Pirotecnias à parte, nos concentremos no frágil conteúdo do plano que compromete a função primordial do Estado, a busca da justiça social. Até mesmo os mais ferrenhos defensores do modelo neoliberal admitem a necessária intervenção do Estado nos serviços essenciais.
O Sistema Único de Saúde, quando foi concebido, através de discussão e participação da sociedade, legitimou a universalidade e a equidade das ações e serviços, preceitos referendados pela Organização Mundial da Saúde. Assim, todo ser humano tem direito ao acesso e igualdade às atividades de prevenção, diagnóstico e terapêutica.
O modelo que a prefeitura tenta impor enfatiza a atenção curativa e, pior, se propõe a prestar apenas atendimento primário e secundário. Trata-se da reprodução da lógica dos planos privados, vendidos pelas medicinas de grupo e seguradoras, que excluem de seus contratos ações preventivas e procedimentos onerosos, abusos recentemente denunciados pela resolução 1.401 do Conselho Federal de Medicina.
Ficam descobertos os atendimentos mais complexos, como aos milhares de portadores de HIV e Aids, doentes crônicos e vítimas graves de acidentes e violências, primeiras causas de morbi-mortalidade de acordo com o perfil epidemiológico da cidade de São Paulo.
O município, responsável pela implantação do SUS, propõe com o PAS transformar o patrimônio público em uma cooperativa de direito privado. Assume a inconstitucionalidade ao desobrigar a prefeitura da gestão do sistema, ao ignorar a atribuição legal do Conselho Municipal de Saúde em aprová-lo e ao ferir a lei das licitações.
Compromete a universalidade e regionaliza apenas os usuários, deixando de lado a descentralização dos serviços que o SUS preconiza. Desestrutura os hospitais de especialidades que atendem usuários de todas as regiões. Ignora parcela da população que prefere ser atendida na região onde trabalha, onde passa maior parte do tempo. Compromete a coleta e análise de dados e indicadores necessários à reorientação dos serviços, uma vez que as cooperativas, dotadas de personalidade própria, dificultarão a troca de informações.
Por fim, o PAS introduz a noção do lucro no setor público e promove a contradição entre os níveis de governo, pois satura a rede estadual e prevê modelo de parceria facilitador de distorções, o que tem sido denunciado pelo Ministério da Saúde, hoje quase resumido a um grande banco que negocia e fiscaliza AIHs -Autorizações de Internação Hospitalar- com grande prejuízo de suas atribuições na condução das políticas de saúde.
As alternativas de gestão precisam ser avaliadas e implantadas, desde que respeitadas as formas legítimas conquistadas pela sociedade brasileira.

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