São Paulo, sábado, 6 de maio de 1995
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Nossos cineastas são mortos de fome e delírio

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

A qui no Rio, na quarta-feira 26 de abril passado, Gabriel García Márquez deu uma de João Gilberto e não apareceu onde tinha encontro marcado com um enorme público. Desde cedo pessoas tinham ido ao Centro Cultural Banco do Brasil para pegar senha para o auditório e estar com Gabo em pessoa, às 18h30, mas Gabo não apareceu.
Ao seu lado, na mesa do auditório, estaríamos Fernando Birri, da Argentina, Guillermo del Toro, do México, e eu. Expliquei como pude ao respeitável público a ausência do hóspede ilustre. Sugeri até, como alguém havia imaginado, que o autor de ``O Amor nos Tempos do Cólera" tinha pegado caxumba.
Como o tema do debate gorado era ``Cinema Latino-Americano: os Próximos 100 anos", eu tinha tratado de levar no bolso algumas notas, subordinadas, na minha cabeça, ao enunciado imperioso de que ``cinema é dinheiro". Para realizarem sua arte escultores precisam de bronze, mas podem se arrumar com barro, pintores carecem de tintas, mas se defendem com lápis de cor, mas o cinema, como carro-chefe da revolução industrial, é arte que requer materiais sólidos para ir longe, como é do seu feitio.
Mal os irmãos Lumière deram os primeiros passos do cinema em terra, o cineasta Méliès tratou de viajar para a Lua, no ano de 1902. Ora, como cinema sem capital não se materializa, a América Latina, para ter cinema, tem apelado para o milagre. Um desses milagres foi gerar gênios literários com rara inspiração cinematográfica.
Que eu saiba, o romancista Graciliano Ramos nunca prestou qualquer atenção maior ao cinema. Descobriu-o, em chegando ao Rio em 1915, com um misto de fascinação e deboche. No Rio, todo mundo adorava a nova ``arte", e Graciliano a saudou: ``O cinema! Ah! O cinema é uma grande coisa! É quase como o amor -é decantado e posto em prática por toda a gente".
Estou colhendo a citação no belo livro de Dênis de Moraes ``O Velho Graça". E embalde procurei, livro afora, outras impressões de Graciliano sobre cinema. Não voltou a se ocupar da chamada sétima arte nem quando andou envolvido com Nelson Pereira dos Santos (o grande criador, na tela, de ``Vidas Secas" e de ``Memórias do Cárcere") e com Leon Hirszman, que filmou ``São Bernardo".
Aliás Nelson, antes de Leon, quis filmar ``São Bernardo". O filme, sob os cuidados de Nelson e de Rui Santos, chegou a caminhar, ``até que Nelson resolveu que Madalena, mulher de Paulo Honório, não deveria suicidar-se, e sim fugir da fazenda". Propôs a alteração de enredo ao velho Graça e recebeu a seguinte resposta: ``Olha, se você quiser fazer o filme baseado no meu livro, tudo bem. Agora, se você quiser inventar uma história, faça a sua história".
A verdade nua e crua é que a correspondida paixão de mestre Graciliano pela literatura não deixava lugar para qualquer outra arte. O milagre é que seus romances ardentes e descarnados constituíam, quisesse o autor ou não, superiores roteiros cinematográficos. Resultaram em obras fundamentais do cinema brasileiro, tanto quanto ``O Cangaceiro", de Lima Barreto, que já nasceu cinema.
Um outro tipo de milagre tem ajudado o cinema latino-americano em geral e reside no elemento que nos diferencia dos demais países: o nosso natural barroquismo. Aí, porém, nem sempre o milagre funciona. O barroquismo às vezes não cabe na tela.
Eu pensei que 1967 seria o ano do total milagre do cinema latino-americano. Foi quando li ``Cem Anos de Solidão". O livro me deu, primeiro, uma certa irritação: achei que eu, ou pelo menos algum outro autor brasileiro, é que devia ter escrito o romance, e não aquele colombiano que se diria nascido em Congonhas do Campo e batizado no Rio, no Mosteiro de São Bento.
Em seguida, já conformado, considerei que ``Cem Anos" não só criava um novo romance como podia inaugurar a nova cinematografia latino-americana. Acontece que o livro era infilmável. Como hipótese distante, seria filmável se se juntassem, para fazê-lo, os estúdios Walt Disney, o diretor Fellini e Glauber Rocha para criar efeitos especiais. Infilmável, ``Cem Anos". Ele nos daria, em 1982, um Prêmio Nobel. Mas jamais nos daria um Oscar.
O cinema latino-americano já provou, com muitos filmes, sua pujança e se apresta com brilho para os próximos cem anos. Mas ainda esperando milagres, aguardando ainda que o maná chova do céu. Nosso primeiro grande cineasta, Lima Barreto, morreu na miséria, como Glauber Rocha.
Acabo de ler, uma vez mais, a última entrevista longa que concedeu Glauber, em 1980, à imprensa. Concedeu-a a Reali Júnior, de ``O Estado de S.Paulo". Glauber evoca, nesse tristíssimo depoimento, não só o Lima Barreto cineasta, que muito admirava, como, talvez sobretudo, o seu irmão de miséria. Glauber acabava de apresentar, no Festival de Veneza, seu ``A Idade da Terra". O filme foi um fracasso tão grande e caiu em tamanho esquecimento que não consegui vê-lo até hoje.
Lembrei os dias que passei preso, na Polícia do Exército do Rio, com Glauber e mais seis companheiros, em 1965, depois de vaiarmos o marechal-presidente Castelo Branco na frente do Hotel Glória. Os primeiros dias de cárcere nós os vivemos apenas no medo do que poderia nos ocorrer. Vieram depois dias de relativa tranquilidade, quando nos organizamos, criando uma rotina de prisioneiros.
Foi então que tivemos a boa notícia de que podíamos receber a visita de parentes. Apesar de tão terno, tão amigo dos seus, tão baiano, Glauber foi o único a fazer cara triste ao ouvir a boa nova. E me confiou: ``Vêm aí as notícias de fora. Vai começar tudo de novo".
Na entrevista ao ``Estado", em 1980, Glauber, que morreria em agosto de 1981, lamentou sua pobreza e partiu para o delírio: ``Sou famosíssimo e paupérrimo. (...) Mais pobre do que eu só tem o Lima Barreto. Fui ficando tão pobre que cheguei à conclusão que deveria enfrentar tudo isso com um paradoxo. (...) Comecei a pensar que o cinema está chegando ao poder. Analisando a crise política brasileira cheguei à conclusão de que poderia me apresentar como candidato à Presidência da República".
O que Glauber estava na verdade tentando dizer é que se o povo brasileiro queria que ele fizesse ainda algum filme deveria elegê-lo presidente. Por outras palavras, deveria dar-lhe o PIB, o Produto Interno Bruto nacional para que ele o transformasse, ele, cineasta em transe de miséria absoluta, em alguma outra ``Terra em Transe". Será que o único caminho que divisamos para o cinema latino-americano é transformar diretores cinematográficos em presidentes das 21 repúblicas?
Eis o que eu teria perguntado à multidão reunida no Banco do Brasil caso Gabo tivesse comparecido ao encontro.

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