São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Campos, liberais e social-democratas

ANTONIO KANDIR

A Folha tem-nos brindado todos os domingos com artigos sempre inteligentes e polêmicos do ex-ministro e deputado federal Roberto Campos. Há duas semanas, o alvo do autor fez-se contra a idéia de ``justiça social".
Seguindo os passos de Hayek, importante liberal austríaco, Roberto Campos declara-se ``perplexo diante do encantamento que o conceito de justiça social" continua a exercer. O ``encantamento" indicaria insanável irracionalidade política, já que não haveria critérios objetivos que definissem tal conceito.
Lido o artigo, fiquei me perguntando como teria sido a história de mais de 200 anos de capitalismo se os trabalhadores, convencidos por completo da irracionalidade do conceito de ``justiça social", tivessem se abstido voluntariamente de interferir na repartição da renda gerada pela economia de mercado. Teríamos hoje um mundo melhor, com maior liberdade e maior eficácia sistêmica?
Há argumentos de sobra para dizer que não. A idéia de que o livre-jogo do mercado produz resultados aquém dos aceitáveis está na raiz dos movimentos políticos e sociais que transformaram, com força especial na Europa, mas também nos Estados Unidos, o capitalismo ``selvagem" do século 19 no capitalismo ``civilizado" do século 20.
Nesse processo, o conteúdo específico que o conceito de ``justiça social" assumiu, isto é, a noção do que fossem ``resultados socialmente aceitáveis da economia de mercado", variou de país para país, de época para época.
Mas uma coisa é certa: a transformação civilizatória que significou a passagem de uma ``fase" para outra do capitalismo teria sido impensável se não houvesse nascido e perdurado o conceito de ``justiça social".
A menos que se suponha que o capitalismo tenha ``evoluído" por força de um mecanismo interno, não-conflituoso, de aperfeiçoamento na distribuição dos fatores econômicos e políticos de poder.
Não é o que revelam mais de 200 anos de história do sistema. O capitalismo ``civilizou-se", tornou-se democrático e de eficácia econômica crescente justamente nos países em que o inconformismo dos trabalhadores com a distribuição da renda materializou-se em força política e social organizada.
Na organização dos trabalhadores como ator coletivo, o conceito de ``justiça social" foi chave. De sua ação estratégica resultaram o acesso dos assalariados às arenas decisórias do Estado e a formação de redes de proteção social.
Não fosse a formação de redes de proteção social, o capitalismo não teria subsistido, a não ser à custa de repressão incompatível com a democracia e as formas economicamente desenvolvidas do próprio sistema, que supõem legitimidade e solidariedade social em níveis razoáveis.
Para a formação de redes de proteção social, fez-se necessária a interferência do Estado. Não apenas para nivelar as oportunidades. Foram interferências nos resultados mesmo do jogo, com marcado viés redistributivista do sistema fiscal.
Fosse diferente, como teria sido possível universalizar o ensino público, os serviços de saúde etc.? Como teria sido possível estabelecer, na prática, oportunidades menos desiguais sem interferir diretamente nos resultados do jogo de mercado?
Acresce não ter havido, nos países que superaram de fato a etapa ``selvagem" do capitalismo, ``imposição autoritária da utopia distributivista". Antes, o contrário: a democracia foi, a um só tempo, condição e produto do processo de redistribuição da renda nesses países.
Que a idéia de ``justiça social" tenha-se convertido por vezes em ``igualitarismo" revela apenas ser ela uma idéia-limite. Como tal, tentar realizá-la plenamente resulta em aberrações, como o provam a Rússia stalinista, a China de Mao e o Cambodja do Khmer Vermelho; assim como a tentativa de suprimi-la resulta em formas regressivas do capitalismo.
A questão está longe de ter interesse apenas histórico. O conceito de ``justiça social" continua a operar hoje, a um só tempo, como fator de aprofundamento do processo civilizatório do capitalismo e freio a impulsos de regressão à fase ``selvagem", hoje tão pronunciados.
No Brasil, país que assiste à crise do ``Estado do Bem-Estar" sem nunca tê-lo implantado, a questão é decisiva na determinação dos projetos alternativos de poder, pois marca, como nenhuma outra, a diferença entre social-democratas e liberais ``fundamentalistas".

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