São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Entre a lenda e a história

DAVI ARRIGUCCI JR.

O faroeste é aqui algo que se dá a ver com o recuo das coisas; a épica tradicional se inclui, dessa forma, na perspectiva moderna
Um jovem foca do diário local, o ``Shinbone Star", descobre, desconcertado, o ilustre visitante e pede-lhe uma entrevista, depois de informar o jornal. Enquanto o senador atende o jornalista e o editor da folha que também se apressa em recebê-lo, a mulher é levada pelo amigo local, o ex-xerife Link Appleyard (Andy Devine), a um passeio pelos arredores.
Os dois velhos conhecidos trocam olhares de mútua compreensão desde o primeiro instante do passeio, quando montam na charrete de Link, e uma forte emoção parece tomar conta da mulher, que fala com voz embargada. Notando a falta da estrela no velho xerife, já há muito aposentado, e as grandes mudanças da cidade -igreja, escola, lojas-, trazidas pela ferrovia, Hallie ouve do amigo que o deserto é ainda o mesmo e pergunta-lhe se os cactos já estão florindo. Como que interpretando o pensamento tácito da mulher, Link leva-a a um antigo sítio, onde uma casa em ruínas, com uma parte inacabada e marcada pelo fogo, está cercada de cactos em flor. Hallie pergunta então se ele -a figura de Doniphon, é aqui mencionada de passagem e sem maior explicação- nunca a acabara e recebe como resposta o comentário de que ela sempre soube de tudo quanto acontecera. Pede, afinal, ao velho que colha uma das flores da frente da casa, e retornam a Shinbone.
Enquanto isso, na redação do jornal, o senador põe fim à entrevista política que acabara concedendo e só então revela o motivo pessoal de sua visita à cidade. A revelação -o enterro de Tom Doniphon-, um homem completamente desconhecido para a perplexidade dos que ali estão à sua roda, coincide com a volta de Hallie e Link do passeio.
Assim se desenvolve a primeira sequência importante do filme, antes que sejam conhecidos os acontecimentos principais da história, só mais tarde narrados em retrospecto, num longo flash-back, pelo senador. Não se trata de um mero preâmbulo ou desvio da narrativa central; é antes o movimento de abertura de um lirismo melancólico, formando uma sequência inicial com relativa autonomia, mas, a rigor, dependente da história toda. É que ela recebe, por antecipação, a carga das tensões acumuladas no que ainda está por vir e que aí já se anuncia sob a forma da intensidade emocional: o pathos que envolve essas imagens iniciais, realçadas em certo momento pela música de fundo e moduladas pelo tom de evocação elegíaca com que são apresentadas ao espectador.
Com efeito, esse tom começa com os primeiros planos do filme, perfeitamente manejados pela arte de Ford. Surge de pronto a imagem impositiva da locomotiva e dos vagões que rasgam o deserto, lançando para o alto um tufo poderoso de fumaça: imagem prototípica do progresso moderno que invade o Oeste. Em rápido contraste, o segundo plano nos mostra, apanhando-o de baixo e de perto, o velho quase estático que, à espera na estação, bate para o chão a pouca cinza do cachimbo já apagado. E no plano seguinte, o gesto é mais uma vez brevemente reiterado, mas agora visto de cima e reduzido à parte inferior da imagem, enquanto, dominando a tela, chega o trem resfolegante.
Ao que parece, de um lado, temos o dinamismo dominador da vida ativa -a máquina vencedora do progresso que chega; de outro, o pequeno, lento, quase imperceptível apagar-se dos seres e das coisas que já cumpriram seu tempo e naturalmente se extinguem. A montagem desses movimentos paralelos, mas desproporcionados e em contraste, suscita num instante uma metáfora irradiadora, que põe em confronto uma dupla ordem de coisas. Seu sentido, de efeito irônico com sua ponta de melancolia, será desdobrado e reforçado por vários índices posteriores.
É que, pouco depois, o traje negro e a compostura das figuras que descem do trem, a referência ao chamado por telegrama e à viagem súbita, os agradecimentos do senador, cada gesto parece sugerir um motivo oculto, provavelmente fúnebre, para a visita. A razão permanece, no entanto, sempre velada, embora, por outro lado, se mostre presa ao passado comum daquelas pessoas, como um segredo compartilhado, como a caixa fechada que a mulher traz consigo feito um misterioso presente para alguém que não está.
Esses indícios, sóbrios e contidos como são, ajudam a introduzir, entretanto, o sentimento da falta ou do que já se foi, em seguida estendido e tematizado ostensivamente na conversação a propósito das mudanças que os novos tempos e o progresso trouxeram para o lugar. Observa-se que elementos muitos gerais, subentendidos e postos difusamente em oposição desde as primeiras imagens -campo e cidade, passado e presente, atraso e progresso, vida e morte, etc.-, voltam a tensionar-se aqui, mas nitidamente submetidos ao sentimento de reservada melancolia que vai modulando o tom com que são narrados os fatos.
Os ecos do mundo do passado passam a repercutir todo o tempo por contraste com o presente, e o sentimento que isso evoca se torna perceptível atrás de cada ato ou palavra que compõe a cena em andamento. No fundo, tudo parece um comentário velado à figura central a que todas as coisas querem verdadeiramente aludir, no reduto natural do passado: a figura desaparecida de Doniphon, conteúdo latente da emoção carreada pelas imagens alusivas.
O que é essencial não se mostra de forma direta. Desde o princípio, a figura de Doniphon, razão da visita, escapa à vista ou à referência explícita, tendendo a se ocultar, encoberta sob as imagens que parecem falar de outra coisa, aferradas à superfície da realidade presente. Mas a falta que nesta se sente suscita a presença do outro, que já não está, despertando o movimento do desejo para um alvo ausente e com ele o sentimento elegíaco do ideal que já não se pode alcançar.
O passeio de Hallie com o velho ex-xerife, também ele parte desse passado que então aflora em contraste com o presente da cidadezinha modernizada pela ferrovia e o progresso, vai desenrolar-se nessa atmosfera com que o filme envolve emocionalmente o espectador, desde seu começo, sintonizando-o com o tom da evocação elegíaca. O restante da sequência aprofunda muito esse sentimento inicial, que impregna uma totalidade complexa de fatos calados ou apenas pressentidos e, por isso mesmo, vai gerar imagens cada vez mais fundas, íntimas e comoventes, fazendo do passeio uma espécie de recuo no passado, de volta em busca do tempo perdido, até o reencontro de um símbolo poderoso desse mundo vivido e profundamente vinculado à figura de Doniphon, que é a flor do cacto.
O presente da cidade mudada contrasta com o deserto que não mudou, que é ainda o mesmo, nas palavras do velho xerife: espaço da natureza onde se acham os cactos em flor a que está associado Doniphon. O passeio caminha, pois, rumo ao deserto bravio e intocado, à natureza, como se buscasse uma harmonia idílica para os sentimentos, tornada já impossível, a não ser pelo resgate de uma imagem que faz parte desse mundo selvagem: a flor do cacto.
Como em toda elegia, há um fundo perdido e inalcançável para o desejo, que, instigado pela falta, busca errante no vazio da ausência, sem poder alcançar e só se apazigua no reencontro do símbolo, presença do ausente, encarnado concretamente na imagem. O movimento interior não se pode harmonizar com o plano exterior da experiência do mundo, que não se casa com o ideal do coração, embora este busque na realidade adversa o repouso para o conflito em que o lança a sensação da falta (6).
Durante o passeio, vai ficando patente pelo diálogo entre os amigos o movimento interior que o velho xerife entrevê na moça, em busca da figura desaparecida de Doniphon: ``Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração", talvez pudesse ela exclamar com o poeta, se alguma palavra clara lhe fosse consentida para o enigma de sua alma. Mas ela se exprime pela voz dos símbolos, reatualizando fundas associações dos sentimentos, quando pergunta ao velho se os cactos já estão florindo.
A flor do cacto, antes de mais nada, é a imagem idílica que promete o reencontro com o perdido, a sonhada harmonia da alma com a realidade. Figura de integração de elementos dispersos, é um símbolo complexo e de largo raio de ação, imagem imantada com força de aglutinação e poder de síntese.
Como produto delicado da aspereza mais bravia, a flor encerra em si mesma funda contradição, ligando-se intimamente, por isso mesmo, à personalidade e ao mundo de Doniphon, que de algum modo por ela se exprime. Não é à toa que ele lança mão dela como uma dádiva de amor, num gesto inesperado para a sua figura, mas característico da poesia bucólica, que tem no faroeste uma versão moderna (7), reatualizada pelo quadro ideal da vida simples no campo. Neste caso, uma oferenda de amor como essa pode parecer já um eco mais tosco e distante dos modelos clássicos ou neoclássicos, mas tem ainda a mesma função convencional de converter o complexo no simples, representando algo oculto que de repente se mostra.
Conforme ficamos sabendo no decorrer do filme, é essa a flor com que o grandalhão rude e tempestuoso, representado por John Wayne, presenteia a jovem Hallie, cuja beleza compara ainda com a da flor. Ele age com a graça de sua truculência atrapalhada, às voltas com um meio de oferecer, sem muita ou nenhuma demonstração, seus sentimentos duramente emparedados. O traço convencional da máscara ou do disfarce, como o do pastor, tão característico da poesia bucólica, aqui muito mudado, assume uma feição dúplice, admiravelmente expressa pelo sorriso ríctus de Wayne -sorriso em corte de faca que rodeia o não-dito-, suspenso entre a falta de jeito e a ironia: de um lado, um enrijecimento quase paródico e de efeito cômico, ao gosto do humor de Ford; de outro, um aprofundamento da interioridade da personagem, sob a capa da rigidez. Que qualquer ato de uma figura do tamanho de John Wayne possa não dar na vista é uma idéia que tem, realmente, alguma coisa de cômico; seu comportamento diante da moça e sua declaração sem muito jeito decerto não escapam, por momentos, dessa dimensão. Contudo, é na capacidade de esconder o melhor de si, sempre encoberto, que ele, paradoxalmente, dará mostras de seu verdadeiro caráter.
Doniphon surge da sombra da noite, nela se esconde, e várias vezes tem seu perfil recortado pela própria sombra, que duplica em preto sua imagem contra o fundo branco da parede. Só sai verdadeiramente das sombras para ajudar a moldar, no instante decisivo do filme, o destino de todos, com violência, mas pela força de sua bondade e senso de justiça, que o levam ao sacrifício do que lhe é mais caro -o amor de Hallie- e ao dom de si. Desse modo, a dimensão delicada e escondida de seu interior se resguarda sob a carapaça da brutalidade mais ostensiva, perfeitamente apoiada na corpulência desmedida, às vezes, desajeitada e um tanto engraçada -tudo admiravelmente bem desempenhado por John Wayne, que tinha o ``physique du rôle" e a capacidade da sutileza, tão avessa a seu porte, sabendo transmitir calor humano, ao juntar a brandura de alma à dureza mais rude e viril.
Mas a flor que nasce por entre os espinhos se coaduna ainda mais profundamente com o homem do deserto, compondo com ele um todo unitário e forte. Ela contrasta com a rosa citadina que Hallie nunca viu, flor que depende das melhorias civilizadas do progresso ainda desconhecido de Shinbone, quando é lembrada significativamente por Stoddard diante da moça encantada com a beleza selvagem do presente de Doniphon. É mesmo uma extensão metonímica dele, pois representa a efusão paradoxal da ternura oculta sob a aspereza daquele herói bronco, talhado pela violência do meio hostil.
O homem é ``belo, áspero, intratável" como o cacto do poeta Bandeira, e a flor que dele brota traz à luz o valor que pode se esconder no mais íntimo do deserto, no âmago selvagem do Oeste, de que ele é, por sua vez, o representante cabal. Compreende-se agora a discrição alusiva com que é tratado desde o princípio do filme e o jogo das sombras em que tantas vezes mergulha. Com a maior finura, simplicidade e sabedoria construtiva, a linguagem de Ford se ajusta à expressão elíptica do herói que se oculta por trás da flor do deserto.
O que isto significa, qual o sentido desse valor que, associado à natureza selvagem, surge em aparente oposição ao progresso moderno, não se pode compreender de todo neste começo do filme. Um halo de mistério persiste, mesmo depois de nos darmos conta da profunda coerência da imagem, do vínculo que liga o símbolo à personagem.
É que o símbolo remete ao todo do enredo, de que é parte, e dele depende para sua exata interpretação. Lido, no entanto, em seu engaste neste primeiro movimento da narrativa, revela-nos a direção genérica para a qual somos conduzidos: a de uma espécie de pastoral elegíaca, onde o ideal de simplicidade natural em que se reconhece o valor está posto na figura de um morto quase desconhecido em quem se resumem as qualidades contraditórias do Oeste, em oposição, à primeira vista, aos valores modernos da vida urbana. Se tivéssemos apenas isso, o filme seria provavelmente uma alegoria sobre um tema chavão, à maneira do clássico beatus ille horaciano: nele se oporia à vida moderna o sonho forjado pelo individualismo burguês de um idílio campestre impossível, mas compensatório do mal-estar do presente. Não se trata, porém, disso. Para a compreensão desse sentido mais amplo e complexo, que brota, por sua vez, das contradições, é preciso retomar a construção do enredo como um todo.
Nos tempos da diligência
Num simples caixão de madeira, num quarto pobre e inteiramente despojado -enterro de segunda em cômodo improvisado num barracão onde se amontoam ferramentas, quinquilharias e trastes velhos do agente funerário pau para toda obra-, Tom Doniphon é velado apenas por um companheiro fiel de toda a vida, o preto velho Pompey (Woody Strode), quando chegam o senador e a mulher, acompanhados do ex-xerife Link.
A emoção é profunda, mas contida; o senador, o único a contemplar o morto no esquife (que tampouco o espectador pode ver), reclama da falta das botas, das esporas e do coldre com o revólver inseparável de Doniphon. O velório é logo interrompido pela chegada do editor do jornal, seguido do prefeito e do repórter: um senador da República é sempre notícia, e o jornalista insiste em saber quem foi Tom Doniphon.
Depois de muito relutar, o senador se dispõe a contar a história toda; ergue-se do banco onde com os demais velava o amigo, passa ao cômodo vizinho e se dirige para uma velha diligência coberta de pó e teias de aranha, relegada a um canto da sala: o que se vai ouvir (e ver) é uma história do tempo das diligências. Foi numa delas, talvez naquela mesma, cuja insígnia descobre, limpando-a do pó, que ele chegou ao Oeste; vinha do Leste, recém-saído da faculdade, com a bagagem abarrotada de livros de direito, portando apenas o relógio de ouro herdado do pai e uns poucos dólares...
Assim o senador Stoddard, já encanecido e quase candidato à vice-presidência do país, dá início à narração de sua vida de outrora, suas aventuras no Oeste -a dimensão propriamente épica de ``O Homem Que Matou o Facínora". O trecho, resumido acima, funciona como conexão entre a abertura lírica e a narrativa propriamente dita que vai começar. Estabelece o canal da narração, que surge quase como uma conversa de velório, inserindo no esquema comunicativo do filme uma espécie de narrador oral em primeira pessoa. A história será vista dentro dessa moldura do começo -que um trem, em sentido contrário, fechará no fim- como um mundo a distância que emerge do passado e se encaixa no quadro do presente, configurado aos poucos pela voz narrativa.
O faroeste é aqui, portanto, algo que se dá a ver com o recuo das coisas que se oferecem à nossa contemplação a distância, quase como um objeto de meditação, foco do olhar e, ao mesmo tempo, da reflexão. A épica tradicional se inclui, dessa forma, na perspectiva moderna.
A técnica adotada por Ford pode lembrar a de Guimarães Rosa no ``Grande Sertão: Veredas". Neste romance inovador, inesperadamente vinculado à tradição da épica oral, o mundo do passado de aventuras do ex-jagunço Riobaldo também se inclui num diálogo com o universo urbano do interlocutor letrado (e nosso) a quem conta sua vida.

Continua à pág. 5-9

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