São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Entre a lenda e a história

DAVI ARRIGUCCI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade

Ficções da fronteira
Talvez seja uma função da arte, como lembrou Borges a propósito de ``Martín Fierro", a de legar um passado ilusório à memória dos homens (1). Não parece outra a dos filmes de ``cowboy" ou de mocinho, como se dizia nos meus tempos de menino. São reconstruções de um passado que tem muito de irreal ou de falso. No entanto, como em toda arte, o resultado pode ser de algum modo verdadeiro. Este paradoxo é um ponto de partida para a discussão crítica desses filmes.
Hoje, os westerns (conforme gostam de dizer os estudiosos de cinema) são quase um gênero em extinção. Certas novidades, ainda quando bem feitas como ``Os Imperdoáveis" (Unforgiven), de Clint Eastwood, pela incapacidade de renovar em profundidade o gênero, só acentuam esta impressão -lampejos de despedida. Já parodiados pelos italianos, os bangue-bangues se acham mais ou menos encurralados nas sessões da tarde de TV. Perdem-se um pouco a distância, reconfirmando a designação original do ``far west": faroestes realmente longínquos, sumindo na poeira do passado... Mas podem mostrar, quem sabe, nesse lento e inexorável afastamento, o melhor da poesia que trouxeram aos nossos olhos.
É o caso dos grandes faroestes de John Ford. Não exatamente, porém, porque o diretor fosse um ``Homero do cinema", conforme o cochilo, não por certo de Homero, mas de algum crítico bem descalibrado na ênfase. Será esse um bom meio de fechar por completo os olhos ao cineasta e de nada ver do poeta, ou seja, de assumir uma cegueira propriamente homérica. Nos filmes de Ford, se revela muito simplesmente a chama viva do gênero na forma duradoura da arte, cujo enigma convém tentar esclarecer.
Para que fossem vistos na perspectiva adequada, os westerns sempre sugeriram algum recuo temporal: ``No Tempo das Diligências", o título brasileiro de ``Stagecoach" (1939) já exprime o distanciamento, desde esse marco inicial, na história dos grandes faroestes. Trata-se, é claro, da distância épica característica de um gênero essencialmente narrativo. Algo da tradição da épica que se perdia nos tempos modernos, muito voltados para os assuntos da atualidade (como se vê por um gênero moderno como o romance), foi resgatado nesse gênero novo do cinema. A peculiaridade deste resgate, no entanto, deve ser bem frisada.
O encontro do homem norte-americano com a natureza bravia nos limites da civilização criou o espaço para um imaginário novo, e uma vasta mitologia veio ocupá-lo. Esse encontro histórico deu margem à imaginação ficcional e estava ainda próximo, quando surgiram os primeiros faroestes, que, desse modo, dão tratamento épico a uma matéria recente. Basta lembrar, por exemplo, que o território de Oklahoma só se torna Estado em 1907 (2), quando já muitos faroestes haviam conquistado para a arte cinematográfica espaços que não haviam sido ainda de todo tocados pela civilização americana (3).
Assim, esses filmes procedem de forma oposta a toda épica clássica, que só trata de um passado absoluto, como assinalaram Goethe e Schiller, quando sentiram necessidade de rediscutir os gêneros clássicos em função das novas realidades de sua época. O passado heróico nacional, a lenda nacional é que constitui a fonte da epopéia antiga, a matéria própria do mundo épico, sempre referido a esse passado remoto das origens, dos maiores e melhores, afastado, por isso mesmo, de toda atualidade, cuja matéria inacabada é objeto do romance, mas não do epos clássico (4). Ao tratar da história recente da conquista e colonização do Oeste americano, o faroeste por assim dizer converte em epos, distanciando-a e idealizando-a sob a forma do mundo primitivo dos pioneiros, a matéria histórica ainda próxima. As consequências artísticas (e ideológicas) dessa operação são, evidentemente, problemas complexos da compreensão crítica desses filmes.
John Ford é um artista umbilicalmente ligado à moderna indústria cinematográfica, cujo desenvolvimento ele acompanhou desde os bons lucros do princípio com os pequenos filmes sobre o Oeste, na fase do cinema mudo -as fitas de Tom Mix, Bill Farnum ou Harry Carey- com as quais ele aprendeu o fundamental de seu ofício de ``metteur en scène", depois de padecer em outras tarefas mal pagas dos estúdios (5). O meio moderno, ao se apropriar do passado recente, projeta-o, mediante o distanciamento épico, à dimensão idealizada da lenda ou do mito, mas não pode evitar a ebulição dos fatos ainda recentes, que afloram de algum modo no passado reconstruído. A zona de intersecção do fato com a lenda é o espaço privilegiado do faroeste; John Ford é o poeta desse espaço.
Na realidade, seu sentimento do épico parece conjugar-se ao espaço da vastidão, à amplitude da paisagem que encontra em Monument Valley a locação ideal. O conteúdo de vasto fôlego que define o épico tem ali seu lugar, mas justamente onde parece que só reina a natureza com seus habitantes primitivos é que se instaura o drama humano e a História. É na linha instável da fronteira mantida pelos uniformes azuis da cavalaria e no recorte das coloridas plumagens indígenas que se armam seus enredos. Assim, por exemplo, com belo colorido, ``She Wore a Yellow Ribbon" (Legião Invencível, 1949) como que transpõe pictoricamente o epos do Velho Oeste, fundindo no hábil entrançado da mescla de cores as linhas ziguezagueantes dos conflitos de fronteira, entre soldados e índios, com a delicadeza dos sentimentos enlaçados.
O conteúdo de verdade histórica dessas ficções da fronteira, desse universo imaginário que inventaram os norte-americanos em suas aventuras nos limites entre a civilização do Leste e a barbárie do Oeste -para dizê-lo com a velha expressão de Sarmiento deslocada de seu contexto sulista-, é um desafio de primeira ordem na compreensão desse gênero que, para André Bazin, constitui o próprio fundamento do cinema norte-americano. Nesse sentido, a fórmula lapidar que inventou esse grande crítico para definir o nascimento do gênero -``le western est né de la rencontre d'une mythologie avec un moyen d'expression" (o western nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão)-, na verdade recobre o encontro histórico que deu origem à nação moderna. O cinema, meio moderno por excelência, deu forma épica ao imaginário de um passado que não era tão distante assim, mas que se confundia com a origem da nação e, ao mesmo tempo, com a origem do próprio cinema. A força do imaginário que se desencadeia dessa conjunção rara e propícia não pode ser de maneira alguma subestimada.
O cinema, que agora completa cem anos, foi, portanto, nos Estados Unidos, o meio de expressão artística de um vasto sonho relativamente recente, que é também o processo histórico de formação dessa nação moderna. Embora o recuo no tempo não fosse grande, o embate histórico foi efetivamente forte para acender a imaginação dos homens e forjar a lenda. Lenda e história estão, pois, entranhadas nas próprias raízes do gênero, que se confundem, por sua vez, com as raízes do cinema.
Num grande número desses filmes, sentimos com naturalidade a interpenetração profunda de fato e ficção. Mas tendemos a apagar das impressões o fundamento dos fatos, a base histórica do processo de que alça vôo a imaginação. Como em vários contos de Borges, como em muitas estórias de Guimarães Rosa, onde encontros parecidos entre civilização e barbárie ou entre cidade e sertão se repetem, facilmente nos deixamos levar pelos jogos da imaginação ou pelo impulso do mito. A compreensão adequada exige, no entanto, o reconhecimento do processo histórico que está na base dessas obras e faz parte de sua estrutura artística.
Sempre me chamou a atenção como certos faroestes de John Ford poderiam ser aproximados de determinados contos de Borges ou do universo literário de Guimarães Rosa. Não apenas pelo paralelo temático, por apresentarem imagens, situações ou argumentos semelhantes, nascidos de assuntos com bases históricas igualmente parecidas. Mas, pelo modo como entranham na própria forma estética o processo histórico a que estão de algum modo referidos, embora não ostensivamente. A sutil transfusão em imagens, de realidades históricas profundas, tem nas mãos desse mestre da escrita cinematográfica um de seus pontos mais altos, de modo que nos seus melhores filmes se pode acompanhar por dentro a sedimentação formal de uma experiência histórica.
Dentre seus grandes filmes, além de ``No Tempo das Diligências", ``Rastros de Ódio" (The Searchers, 1956) ou ``Paixão dos Fortes" (My Darling Clementine, 1946) devem ser sempre lembrados. No entanto, gostaria de destacar uma obra-prima muito mais discreta que as anteriores, mas nem por isso inferior: ``O Homem Que Matou o Facínora" (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962). Em geral, a crítica de Ford não pensa assim; creio, porém, que é preciso contradizê-la.
Obra da fase final do diretor, é um faroeste diferente, sem índios ou grandes espaços naturais, apartado de Monument Valley. Tende a concentrar-se em si mesmo, claustrofóbico e noturno, batido de sombras realçadas pela fotografia em preto e branco de William H. Clothier. Além disso, deve ter espantado um pouco os críticos pelo caráter meditativo e elegíaco de sua narração em retrospecto.
Mas, sem dúvida, é uma súmula da melhor arte de Ford. E, sobretudo, muito agudo na expressão de suas relações com a História. Basta vê-lo na perspectiva adequada, como espero fazê-lo através da leitura analítica, para que mostre a verdadeira grandeza. Todos os dotes do extraordinário artesão que pouco falava de sua arte estão ali postos, em precisa execução. Pelo poder de síntese e redução formal, vale como exemplo do gênero, cuja poética exprime em profundidade e abrangência. Ao mesmo tempo, faz brotar uma secreta poesia que sabe infiltrar-se, como o humor fordiano, por brechas inesperadas. Aos poucos, ganha o espectador, tomado por fim completamente pela força despojada de suas imagens simples e complexas a uma só vez. Convém rever o que ali se conta, na falta do filme.
A flor do cacto
Um trem fumegante, cortando um campo deserto, traz à cidadezinha de Shinbone o senador Ransom Stoddard (James Stewart) e sua mulher Hallie (Vera Miles). Vêm acompanhar, junto com um velho conhecido que os avisou por telégrafo e agora os espera, o enterro de Tom Doniphon (John Wayne), um homem lembrado apenas por uns poucos amigos. (O espectador só tomará conhecimento do motivo da visita mais tarde).

Continua à pág. 5-8

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