São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Entre a lenda e a história

DAVI ARRIGUCCI JR

Ford reconta a história a partir da perspectiva do vencido que ela soterrou, impedindo que o passado fosse visado como constitutivo do presente
Por esse modo de contar se exprimem as relações profundas do mythos que, vindo do fundo mais arcaico do sertão e misturando distintos graus de realidade histórica e simbólica, se endereça e se prende ao mundo moderno, numa espécie de busca de esclarecimento. No filme de Ford, o narrador é, porém, um letrado que vive a experiência do sertão bruto, do deserto do Oeste, ao qual quer levar o esclarecimento na forma de um herói civilizador, e depois refaz o percurso para contar a história do que aprendeu com o próprio deserto e com o homem que era parte dele e de algum modo foi seu símbolo, recoberto pela vitória do progresso.
Com efeito, a figura de Stoddard reassume o papel do narrador da tradição oral da épica. Dirige-se, entretanto, a uma roda de ouvintes (e a nós espectadores) modernos, os representantes das instituições que vieram ou se firmaram com a ferrovia e que têm no jornalista uma espécie de arauto dos novos tempos. Não é à toa que é este o seu principal interlocutor. Ao narrar, recua, porém, ao passado, que é o tempo das diligências. Em oposição ao trem do início, introdutor do progresso moderno, a diligência retoma sua antiga função, mas agora no plano metafórico da narração, e vira o meio de comunicação com o velho Oeste, o veículo de transporte -metáfora no sentido literal- para o mundo épico, fazendo a ligação com o passado de aventuras do narrador.
É muito significativo e bonito que Ford tenha encontrado nessa imagem emblemática de seu mundo épico -``stagecoach" que abre seu ciclo de grandes faroestes- o transporte que leva daqui para a aventura, na voz do narrador. Este, quando começa a narrar, deixa a velha diligência no fundo da sala e caminha em nossa direção, remontando o passado rumo ao presente. Recebemos dele o legado do fio da história, que, em seguida, a diligência, já em movimento no horizonte superior da tela, se encarrega de enredar na presentificação da cena viva.
Parte real do passado que traz com ela, a diligência abre também os caminhos do sonho e da ficção. O gesto com que o narrador a limpa do pó do presente é o mesmo que reatualiza sua função do passado, despertando-a de repente do sono do esquecimento para a aventura, que ela carreia viva de novo no movimento sacolejante da ação narrativa. Com ela, começa de fato a história, o enredo em retrospecto.
Saído das sombras
O fundamental do relato do senador, ou seja, os principais acontecimentos do filme, se deixa resumir mal no que se segue.
A diligência que leva Ransom Stoddard em busca de fortuna, fama e aventura ao Oeste é assaltada por Liberty Valance (Lee Marvin), um bandido que espalha o terror na região. Ransom, sem perder a coragem, mas impotente em seu protesto indignado, vê seus livros rasgados e jogados fora pela estrada. É roubado -fica sem o relógio de ouro- e por fim, atirado ao chão, acaba espancado barbaramente por Valance, que, com fúria mal contida pelos comparsas, se descontrola nos golpes repetidos do chicote sem dó, largando-o meio morto à beira do caminho.
No meio da noite, Tom Doniphon, secundado pelo inseparável Pompey com a carroça, leva a salvo o ``peregrino" (como Doniphon chama Stoddard) à casa da namorada Halley, onde o pobre ferido é logo cuidado pela moça e seus pais, imigrantes suecos que ali mantêm um restaurante (o pai é John Qualen, veterano ator de Ford, e a mãe, Jeanette Nolan).
Logo, Stoddard se dá conta de que naquele lugar de nada valem a lei e os princípios de direito que aprendeu no Leste. Sempre falando em prender Valance, se torna objeto do sarcasmo de Doniphon (o próprio xerife Link, glutão sempre endividado na cozinha de farta-brutos dos Ericsons, treme à simples menção do nome do facínora e mantém sua jurisdição, quer dizer, sua barriga, a prudente distância daquela temível presença). Cada qual deve cuidar de seus próprios negócios, como diz Doniphon, insistindo no império do revólver. É o que tem ocasião de demonstrar dias depois, ao fazer frente a Valance. O bandido, com a maior desfaçatez, confiante na impunidade da lei do chicote e do gatilho, vem comer no restaurante onde Stoddard, de avental e sempre pregando a ordem e o direito, vira alvo de achincalhe geral, mas bravamente impede o duelo prestes a se travar.
Pouco depois da partida estrondosa de Valance, mais uma vez semeando a desordem, o dono e editor do ``Shinbone Star", Dutton Peabody (Edmund O'Brien), oferece inadvertidamente, correndo maiores riscos de agressão do facínora, as dependências do jornal para Stoddard abrir o escritório de advogado. À espera dos eventuais clientes, Stoddard dá aulas para um grupo de crianças e adultos, como a própria Hallie, a mãe dela e Pompey, interessados em aprender as primeiras letras e os princípios da democracia americana que o professor também diligentemente ensina; ao mesmo tempo, parece seguir o conselho de Doniphon e se dedica a praticar com o revólver nos arredores da cidade.
No dia em que Shinbone elege um representante para a Convenção que decidirá sobre a entrada do Colorado nos Estados Unidos, Stoddard indica Doniphon, que, no entanto, recusa. Valance, braço armado a serviço dos grandes criadores de gado contra os agricultores, procura obter os votos a seu favor por intimidação, mas fica isolado com seus asseclas, sendo, por fim, derrotado pelo próprio Stoddard, a quem desafia para um duelo.
Entrementes, o bandido, ajudado pelos capangas, empastela o jornal de Peabody, que escrevera contra ele corajoso libelo, e desta vez espanca selvagemente o jornalista com o chicote. Stoddard aceita então o desafio e avança contra ele na rua principal, mergulhada na obscuridade. Depois de ferido na mão e desarmado, consegue reaver o revólver que lhe emprestara Peabody, atira e abate Valance. Hallie, dividida entre Tom e o advogado, cuida carinhosamente do ferido, após o tiroteio. Doniphon que parece ter chegado tarde para auxiliar Stoddard, os vê abraçados, Hallie aos prantos, e imagina ter perdido a namorada; embriaga-se e, num acesso de cólera, incendeia a casa em construção, que aumentava para receber a noiva, sendo salvo a custo pelo fiel Pompey.
Na Convenção, Stoddard é atacado maldosamente pela retórica adversária do astuto e cínico Strabuckle (o formidável John Carradine), representante dos criadores. Assim se dá conta de que sua reputação de aspirante ao cargo de governador do novo Estado depende quase exclusivamente de sua fama como o homem que matou Liberty Valance; resolve, por isso, abandonar tudo e retornar ao Leste. Impedido por Doniphon, ouve então dele a verdade sobre os fatos da noite do duelo: atendendo ao pedido de Hallie para protegê-lo, fora Doniphon quem realmente matara o facínora, com um tiro certeiro de carabina, pelo viés escuro de uma travessa da rua principal, no exato instante em que Stoddard disparara contra Valance. Aqui se encerra o relato do senador, que depois daquele dia, diante da revelação que o fez tomar nas mãos o seu destino, cumpre a brilhante carreira política de todos conhecida.
O filme não termina, porém, aí. O jornalista que escutou a história toda, amassa e joga fora o papel das anotações, desinteressado da entrevista, pois, segundo diz, no Oeste, quando os fatos se tornam lenda, publique-se a lenda.
Depois das últimas homenagens ao morto -sobre o caixão de Doniphon, se ergue a flor do cacto-, os visitantes se vão. No trem, Stoddard ouve de um empregado a frase que virou, ironicamente, a marca de sua vida: ``Nada é bom demais para o homem que matou Liberty Valance". Com planos de deixar a vida política e retornar definitivamente ao Oeste, o senador e a mulher seguem viagem. O trem, fumegante, retorna na direção oposta à do princípio.
Com essa longa história, o senador procura responder ao jornalista quem foi Tom Doniphon. Nesse sentido, seu relato representa o resgate de uma identidade obscura, perdida no tempo, dando voz a um passado que não encontrou reconhecimento algum no presente moderno do lugar. Uma identidade resguardada de início na imagem cifrada da flor do cacto, cuja revelação depende agora de sua dimensão histórica: a visão de um modo de ser que só se mostra plenamente à luz pela reminiscência dos atos decisivos que o constituíram no passado. Através do enredo que conta esse resgate, a imagem que sela de início a figura de Doniphon se desdobra em seu fundamento histórico, revive o momento de risco e perigo, quando revela sua real dimensão humana e de fato floresce para o presente.
Por esse relato, também o espectador conhece a importância única do personagem no andamento, nos rumos e nas consequências de toda a ação que constitui o centro do filme. O resultado é uma contradição marcante entre o papel de Doniphon e o obscuro lugar que lhe é conferido ao final da história. O efeito não podia ser mais irônico, nem mais coerente com o princípio do filme, religando-se em profundidade o caráter obscuro do herói selvagem que se espelha na natureza com a revelação de seu destino histórico, que de algum modo ajudou a tornar possível o presente.
No todo, Ford parece ter feito do enredo simples do faroeste -enquanto forma da pastoral moderna- um meio de investigar coisas complexas como a natureza paradoxal da realidade onde o maior valor pode ficar relegado à sombra, convertendo a ficção num modo irônico de resgatar o destino histórico do homem do deserto na formação da nação moderna. Na realidade, reconta a história a partir da perspectiva do vencido que ela soterrou, impedindo que fatos decisivos do passado fossem visados como constitutivos do sentido do presente.
Com efeito, o filme parece uma tentativa de esclarecimento, uma visão moderna da velha épica do Oeste americano, pois busca desfazer o equívoco perpetuado na memória da maioria, que consagrou a lenda em detrimento de fatos decisivos. Ele se organiza realmente como busca de uma revelação, procurando trazer à luz a verdade de certos fatos contra o obscurantismo da lenda, ironicamente vitoriosa, porém, ao fim do relato, nas palavras do jornalista. Este prefere veicular, conservadoramente, a ilusão que recobriu o momento de verdade. Desse modo, o que se tem é uma construção em dupla ironia.
Em primeiro lugar, a ironia dramática do desenvolvimento do enredo que refaz o percurso dos fatos para tirar das sombras o verdadeiro herói, revelando a verdade histórica: aquilo que, sendo aparentemente obscuro, na realidade tornou possível o progresso moderno. Depois, se tem a ironia do efeito, pois diante da verdade histórica a descoberto, o jornalista, herdeiro do progresso, prefere a ilusão da lenda que recobre para sempre os fatos reais, relegados de novo à sombra e ao esquecimento. A consciência histórica significa, neste caso, o reconhecimento de uma semente geradora do presente desentranhada de um passado aparentemente morto e esquecido. A memória do narrador é a salvação da história que não foi contada e que se perpetua, contra a lenda, pela força de resistência da arte narrativa, aqui constitutiva da forma do filme.
Assim, a ficção do faroeste, armada de discernimento crítico, permite ver a verdade sob a ilusão. Em ``O Homem Que Matou o Facínora" pode-se reconhecer, portanto, uma versão crítica do processo de modernização do Oeste, destacando, sem maniqueísmos, o papel da chamada barbárie no próprio movimento de constituição da civilização americana, ao mesmo tempo que confirma a tese benjaminiana do monumento de cultura que é também um monumento de barbárie. O modo como a revelação desse processo toma forma artística é o que se deve analisar enquanto processo interno da estruturação do enredo ficcional.
O livro e o chicote
O princípio pelo qual o enredo se constitui enquanto processo irônico de uma revelação depende de uma espécie de dialética entre civilização e barbárie, fundada no contraponto entre os personagens centrais que encarnam valores contraditórios, mais uma vez sem redução simplista.
Segundo suas próprias palavras, Ransom Stoddard vai ao Oeste em busca de fortuna, fama e aventura, sugerindo uma espécie de móvel romanesco, de impulso romântico, para um indivíduo com a cabeça formada pela civilização moderna do Leste. Na verdade, desde o começo, durante o assalto à diligência, mostra seu papel de herói civilizador, defensor da norma burguesa oitocentista e guardião dos princípios do liberalismo americano. É o cidadão esclarecido, portador das luzes, que crê na função redentora da educação e logo sai em defesa dos direitos individuais e dos demais valores em que acredita, como ao tentar proteger uma pobre mulher roubada como ele, enfrentando o chicote de Valance. Por isso, tem no livro de direito a sua imagem metonímica característica, como uma extensão de seu ser. Seus ideais chegam com seus livros ao deserto e se medem com a realidade inóspita, onde a regra é a violência, imposta pelo poder dos mais fortes.
Primeiro, o livro vale como uma espécie de signo indicial do letrado que ele é; depois, rasgado e remendado, se torna, na cozinha do restaurante, um ícone do bacharel ferido, com a cara recoberta de curativos, a quem lembra, portanto, até fisicamente; por fim, se converte na marca simbólica do homem e seus valores. Batido e humilhado, lavando pratos numa tina da cozinha, Stoddard reencontra nas páginas do livro a dignidade e delas procura tirar as razões certas para agir.
O bacharel de direito é, a princípio, o jovem ingênuo e confiante -o ``peregrino" de Doniphon-, desarmado para o deserto, mas portador dos valores modernos da civilização do Leste; tendo partido em busca da conquista do Oeste selvagem, encontra no livro seu instrumento de trabalho e poder. Pelo livro buscará ainda a conquista de Hallie, que tem a beleza da flor do deserto. Presa ao meio selvagem (e a Doniphon), ela é uma garçonete iletrada e esbaforida, que queima as melhores energias da juventude entre o fogão dos pais e as mesas de uma clientela pantagruélica e bêbada, à espera de bifes brutais, na medida exata e descomunal daqueles seres rudes do Oeste.
Ser de mediação, a moça oscilará entre o desejo de mudança de vida, com que lhe acena Stoddard, transmissor da instrução e, assim, da dimensão esclarecida e moderna do progresso, e o obscuro, mas cativante mundo dos sentimentos que a enraizam no chão da flor do cacto e de Doniphon. Suspensa entre a história e o mito, entre a vida civilizada e a natureza bárbara, ela tem o encanto escorregadio dos seres dúplices e dubitativos; poderá ceder à força nova do progresso, mas guardará o segredo do coração enterrado com a flor do deserto. Talvez por isso, num instante de despedida, belo e fugaz, ela permaneça de pé, sozinha sob o umbral da porta que dá para o campo -a silhueta recortada pelas luzes da casa-, vendo em silêncio a figura altiva de Doniphon perder-se na escuridão da noite e do deserto. Aí se sente a grandeza do filme, expandindo-se na sondagem moral das ambiguidades existenciais, avançando pelo limiar da porta, através de luzes e sombras, entre a história e a natureza.
Desde o primeiro momento da narrativa do senador, o livro, estraçalhado e atirado ao chão antes mesmo que seu dono, aparece em oposição ao tremendo chicote de cabo de prata de Liberty Valance. Arma oposta e paródica ao nome do facínora, negação da liberdade que é -o bravo Peabody saberá quanto custa tomar liberdades com esse nome no seu jornal-, o chicote é, por sua vez, uma extensão natural do modo de ser de Liberty. De fato, é por ele que se comunica com o mundo a brutalidade do bandido, cujo descomedimento se exprime pelos modos bruscos e a agitação incessante de fera enjaulada, impelida a golpear sempre sua fúria incontida contra todos e tudo. (Marvin, sempre durão, aí se exime na crueldade de homem mau, apoiada por trejeitos e espasmos obscenos da face).
No limite, o livro e o chicote -este associado com frequência ao revólver-, destacados desde o início da ação do filme, encarnam valores históricos opostos, que se digladiam ao longo de todo o relato, transformando-se em símbolos articulados ao movimento profundo do enredo.

Continua à pág. 5-10

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