São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Entre a lenda e a história

DAVI ARRIGUCII JR.

Num mundo onde as idéias liberais costumam acabar no mercado, já não interessa verdade alguma, nem a do homem que matou o facínora
Configuram, na verdade, imagens-síntese do sentido que passa pelos enfrentamentos entre civilização e barbárie, móveis do processo de modernização da região atrasada representado pela conquista e colonização do Oeste. Sua força cinematográfica de imagens metonímicas ligadas ao todo do enredo depende em profundidade desse seu raio de ação simbólica, apoiado, por sua vez, em sua capacidade de sintetizar realidades profundas do processo histórico a que remetem.
James Stewart sempre deu mostras de ser um ator talhado para encarnar o herói da maturidade viril (característico do romance na visão de G. Lukács), como em vários dos melhores faroestes de Anthony Mann. É que parece conciliar, com a serenidade de seus olhos azuis, a interioridade problemática do indivíduo com as necessidades de adaptação ao meio social, respondendo com a precisão e o equilíbrio próprios do ser experiente ou da maturidade ideal às piores adversidades ou aos mais arriscados desafios. Antes, nas comédias de Frank Capra, encarnava com pureza e otimismo a crença ingênua nos valores da democracia americana. Com Ford, envelhece como vinho bom, afinando seus recursos, para deixar ver cada vez mais a grandeza dos sentimentos sob as atribulações do ser em conflito.
Aqui, senhor absoluto de sua arte, passa, com poder de convicção, da tenacidade algo quixotesca de seu idealismo inicial, ignorante e desligado das agruras do Oeste, para uma adesão profunda aos homens e às coisas do novo meio, sem se deixar vencer pela desilusão romântica, ao ser golpeado pela realidade adversa. Assim se mostra como instrumento de transformação efetiva do deserto, uma espécie de agente da mudança histórica, ser em que se reúnem forças maiores que as individuais, acabando então por dar corpo aos valores que pairavam abstratamente em sua cabeça quando de sua chegada ao Oeste. Com isto, faz pulsar concretamente a modernização da região atrasada, representando vivamente o movimento das contradições características desse processo histórico.
O resultado é uma personagem realista, complexa e típica ao mesmo tempo, na qual se podem reconhecer também traços semelhantes de outras da nossa história sul-americana. Com efeito, poderia ser muito bem um herói de Sarmiento, posto a combater a barbárie dos ``gauchos" de algum caudilho provinciano e a natureza bravia do pampa, e não deixa de realizar o ideal de nosso Zé Bebelo do ``Grande Sertão", que quis ser deputado e levar os valores esclarecidos da cidade para o sertão, a fim de acabar com a desordem da jagunçagem.
No sonho ilustrado de Ransom Stoddard, que aparentemente dá certo, se espelham, portanto, tanto as aspirações liberais de Sarmiento que teriam mudado a história argentina se os argentinos se tivessem disposto a seguir a lição por ele formulada, segundo observou Borges, como as fantasias políticas, paralelas e frustradas, de nosso chefe jagunço, ``raposa que demorou". As semelhanças não são decerto mera coincidência, mas se explicam pela base histórica similar, de algum modo incorporada à estrutura das obras artísticas.
A história e a lenda
A personagem representada por Stewart se associa naturalmente à figura do jornalista, que desde o primeiro instante reconhece nele não só a notícia, mas provavelmente também a chegada do futuro. Por um lado, nessa relação se consolida, no plano do desenvolvimento do enredo, a união das forças democráticas da cidadezinha contra a ameaça à liberdade que representa o bandoleiro selvagem. Por outro, do ponto de vista das idéias que se ligam ao enredo, se revela o pensamento político que está por detrás dos atos de algumas das personagens principais e que poderia parecer, sem a integração à matéria histórica tratada obliquamente, uma ingênua lição de princípios da democracia americana.
À chegada de Stoddard, o rechonchudo Peabody já se acha um pouco desencantado, bastante sarcástico, beirando o completo cinismo, e sempre bêbado. Mas, ainda encontra em si a coragem moral para servir à causa ilustrada do jornalismo e aos valores liberais, defendendo a todo custo a liberdade de imprensa como condição da opinião pública bem informada e, como ele próprio brinca, tomando perigosas liberdades com o nome de Liberty.
Sua militância parece inspirada no pensamento político de Thomas Jefferson, a quem mais tarde se referirá explicitamente o seu aliado Stoddard. Transformado também em professor, é como se o advogado cumprisse o princípio jeffersoniano de defesa republicana da escola pública. Fundada na igualdade de direitos dos indivíduos, ela seria capaz de promover respostas esclarecidas às questões públicas e de dar livre acesso à informação sobre o governo escolhido pelo voto popular.
Na escolinha do professor Stoddard, temperada pelo humor fordiano para não cair na chatice descabida de uma exposição declarada de princípios, esse pensamento, mesmo entrecortado por interferências irônicas ou cômicas, vem claramente expresso. Mas, já estava implícito antes no comportamento de Peabody, visto pela verve de Ford: junta as idéias liberais ao corpo gordinho feito ervilha, aludido em seu nome e movido a álcool. No papel, Edmund O'Brien, que pode lembrar Thomas Mitchell, o médico bêbado de ``Stagecoach", passa, com facilidade e domínio de sua arte, da bebedeira à sobriedade lúcida do militante combativo.
O jornalista defende muito bem, conforme observa o amigo bacharel, a importância do voto popular e os direitos dos pequenos fazendeiros frente aos grandes criadores. Desse modo, dá curso à posição jeffersoniana de reforçar, democraticamente, os direitos de indivíduos ou grupos de terem um padrão de vida decente frente a interesses contrários e mais fortes, como no caso de sua recusa crítica às leis que pudessem garantir, tal qual na França, a concentração das terras nas mãos de poucos.
No filme, essas idéias encontram o chão histórico das disputas em torno das terras do Colorado. É que os grandes criadores estavam interessados em manter aberto e à sua mercê esse território, contra a intenção dos agricultores de transformá-lo em Estado, integrando-o à União (o que só se daria em 1872) e ao progresso (só acentuado com o maciço crescimento populacional durante essa década de 70 até 80, quando se dá a expansão da ferrovia). Na verdade, a militância do jornalista se prende a essa perspectiva política de transformação do território em Estado, necessária à vinda do progresso. Desse ângulo, Valance significa não uma ameaça abstrata à liberdade ou uma forma de maldade natural ou ontológica, mas uma força obscurantista que serve aos interesses materiais de poderosos empenhados na disputa da terra.
A história do Colorado, até chegar primeiro a território e, depois, a Estado, é cheia de turbulências e complicações. No longo processo, há um momento de constituição do ``Arapahoe county", que incluía o leste daquela região, e foi organizado como parte do território de Kansas, em 1858; nessa ocasião, um delegado foi enviado ao Congresso americano para trabalhar para a admissão de um território independente, chamado mais tarde de Jefferson. Esse episódio está na origem da constituição do território do Colorado, que só foi estabelecido pelo Congresso em 1861. Por sua vez, as gestões para a transformação do território em Estado começaram em 1867, mas apenas nove anos mais tarde se concretizariam. O filme reconstrói, portanto, em resumo, momentos desse processo, mas na forma de uma história elíptica, parecida à da expressão do herói do deserto. É o quanto basta para dar base concreta às idéias, incorporando-as significativamente ao enredo.
Peabody refaz, assim, as forças na pureza da crença e na tenacidade de Stoddard, ao mesmo tempo que a ele se liga ideologicamente. Seu aliado, por sua vez, utiliza um dos artigos do jornalista para comentário na aula em que relembra a Declaração da Independência, redigida por Jefferson. Apesar do retrato de George Washington dependurado na parede, são as idéias de Jefferson que reinam na sala de aula. O professor chama, com alguma ironia, o negro Pompey para responder a pergunta sobre esse que foi um dos fundadores do partido democrata e militou, embora proprietário de escravos, na luta abolicionista. Como se sabe, Jefferson foi autor da lei que, em 1778, aboliu a importação de escravos na Virgínia, distinguindo-se na formação da nação americana justamente pela defesa tenaz da igualdade de direitos de todos perante a lei.
Ford, biógrafo do jovem Lincoln, no início de sua carreira, faz agora pairar a imagem histórica e exemplar de Jefferson sobre a figura de seu jovem bacharel e professor, moldando-lhe as idéias para revolucionar o Oeste e representar diante da barbárie violenta do bandido o valor moral da civilização americana.
Esse bom-mocismo edificante de Stoddard será corrigido no confronto com Doniphon. Pela face obscura mas incisiva de sua atuação, Doniphon mostra outros lados de ambas as realidades postas em contraste desde o princípio do filme. Com isto se impede que qualquer maniqueísmo ideológico possa simplificar empobrecedoramente a visão do mundo aí exposta, embora se esteja a um passo disso.
Também a relação com Hallie, pontuada até o fim pela ambiguidade dos sentimentos da moça, revela outros aspectos da interioridade de Stoddard. Ao cabo da carreira, ele de novo imagina uma volta idílica à vida simples do Oeste, lembrando talvez ainda uma postura tão cara a Jefferson, confiante no progresso, mas desconfiado do modo de vida das cidades. Por outro lado, é no Oeste que sua mulher pode ter deixado parte do coração, como se pode entrever pela conversa de ambos ao partir, no final do filme. Ao consultar Hallie sobre o desejo de voltar e reabrir ali o escritório de advocacia, ouve da mulher que ela muitas vezes não teria pensado senão nisso, porque ali tinha suas raízes. E, além disso, o sertão é agora um jardim. Depois de ter entregado a existência toda para forjar o mundo na ordem que ali também se encontra -seu último projeto é o de implantar no Oeste um sistema de irrigação-, Ransom Stoddard pensa em voltar. Pergunta a Hallie quem colocou sobre o caixão a flor do cacto, e ouve da mulher que foi ela. Um certo véu de melancolia e perplexidade turva, ao fim da viagem, os olhos desse herói civilizador, tocado por razões pessoais, mas já distante do ímpeto antigo que o impelia, apesar de cercado de fama e veneração pública por onde passa. A realidade é que não poderá retornar a uma casa no deserto do Oeste, pois agora, como no caso de Doniphon, já nenhuma pode existir.
É nesse quadro de cogitações que o velho senador ouve uma última vez a frase de secreta ironia que o destino lhe reservou como o homem que não matou Liberty Valance. É ainda a sombra de Doniphon que o acompanha. Torna-se difícil dizer tudo o que vai na alma desse herói vitorioso e um pouco alquebrado, quando o caminho do regresso se abre à sua frente. Sua viagem acabou, e o tempo do progresso moderno por que tanto batalhou aí está; deixou-lhe na alma uma ponta irremissível de amargura, talvez a marca mais profunda da contingência, que é traço inseparável da fisionomia moderna.
Parte substancial da complexidade, eficiência e solidez de Stoddard enquanto personagem depende, como se vê, das suas relações com os outros. Entre esses está decerto a figura do jornalista, primeiro Peabody e, depois, o interlocutor final a quem o senador conta a história.
Peabody começa participando da luta, esgrimindo os linotipos contra o facínora que lhe ameaça a liberdade e mesmo quando sucumbe ao chicote de Valance, ainda assim serve à causa, pois acaba empurrando o advogado para o confronto final com o bandido. Peabody funciona como uma ``ficelle", uma personagem de ligação artisticamente dissimulada (8). Aqui se trata de uma presilha que tanto vale no plano dos valores, quanto no da ação, ao mesmo tempo que amarra a figura do jornalista ao novelo do debate das idéias centrais e finais do enredo. Sua participação ajuda a dar consistência acabada à forma do filme, trazendo um efeito irônico articulado à revelação em que a ação narrada desemboca. Digamos que é um pouco por via do jornalista que nos chega a história toda do filme. No entanto, é também o jornalista quem descarta a verdade eventual dessa história para ficar com a lenda. A reflexão crítica final sobre o filme deve também acabar por ele.
É que no jornalista bêbado do início talvez se possa reconhecer, antecipadamente, o reflexo da crise da fase heróica da burguesia, dividida pelas contradições que minam seus ideais revolucionários, antes mesmo que se implantem de todo. Alguma coisa disso está no desencanto de Peabody, que se reanima com a pureza do ideal do jovem Stoddard. Este, que resolve contar a história, levado pela lembrança de Peabody, conta-a a um sucessor dele, que a despreza, em favor da lenda que virou notícia, usurpando o lugar da verdade. A embriaguez amarga de Peabody anuncia a tinta da melancolia do velho senador. O último jornalista apenas estampa a ideologia, que ganhou a concretude aparente das coisas que interessam ao mercado. As idéias liberais costumam acabar no mercado. Num mundo como esse, a verdade seja dita: já não interessa verdade alguma, muito menos a da simples história do homem que matou o facínora.
Visto assim à distância, o faroeste de Ford talvez revele ainda o que sabe guardar, na sua simplicidade de pastoral elegíaca, da secreta poesia das coisas que se perdem no tempo. Nessa poesia, dorme decerto uma forma do valor, e pode despertar de repente, ao olhar propício de um narrador, para a vida do presente e da História, como a semente perdida na pirâmide, capaz de germinar depois de séculos.

NOTAS
(1) Cf. Borges, Jorge Luis - ``Prólogos". Buenos Aires, Torres Agero Editor, 1975, pág. 94
(2) Os admiradores do gênero se lembrarão decerto de ``Cimarron" (1960), faroeste crepuscular de Anthony Mann, em que se narra o processo de constituição desse Estado americano
(3) Ver, nesse sentido: Astre, Georges-Albert e Hoarau, Albert-Patrick - ``Univers du Western". Paris, Cinema Club/Seghers, 1973, págs. 20 e ss
(4) Ver Bakhtin, Mikhail - ``Récit Épique et Roman". Em seu: ``Esthétique et Théorie du Roman". Trad. fr. Paris, Gallimard, 1978, págs. 439-473
(5) Veja-se o interessante depoimento que Ford deu nesse sentido a Axel Madsen: ``Cavalier Seul". "Cahiers du Cinéma, nº 183, outubro de 1966, págs. 38 e ss.
(6) Em seu ensaio sobre a ``Poesia Ingênua e Sentimental", Schiller, ao tratar das maneiras de sentir próprias da poesia sentimental -aquela que busca aplicar as Idéias à realidade- destaca o ritmo contraditório da elegia que, em sua aspiração pelo ideal em oposição ao mundo real, alterna movimento e repouso, conflito e harmonia. Ver op. cit. Estudo e tradução de Márcio Suzuki. S. Paulo, Iluminuras, 1991
(7) Northrop Frye observa que no western, versão popular moderna da pastoral, é comum se preservar o tema da fuga ao meio social, aliada à idealização da vida simples do campo ou da fronteira dos pioneiros. Veja-se, desse autor, a ``Anatomia da Crítica". Trad. br. Péricles Eugênio da Silva Ramos. S. Paulo, Cultrix, 1973, pág. 49.
(8) ``Ficelle", como se sabe, é o termo teatral empregado por Henry James para uma espécie de personagem de ligação que pertence menos ao tema que ao tratamento artístico. Ver desse autor - ``The Art of the Novel". Introd. de Richard Blackmur. New York/London, Scribner's, 1962, págs. 322-323 et pas.

DAVI ARRIGUCCI JR. é ensaísta e crítico literário, professor de teoria literária e literatura comparada na USP, autor, entre outros, de ``O Escorpião Encalacrado" (Perspectiva) e ``Humildade, Paixão e Morte" (Companhia das Letras)

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