São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Dor e arte

FERREIRA GULLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando se fala da relação entre a dor e a arte, deve-se distinguir a dor física da dor moral. Na minha opinião -e até onde posso afirmar baseado em experiência própria- a dor física tende a anular as condições psicológicas propícias à geração da obra de arte. Se não é impossível que alguém, atacado de forte dor física, seja levado, por efeito dela, a elaborar um poema, tal ocorrência seria uma exceção. Uma exceção porque a dor física, se de forte intensidade, tem o poder de anular momentaneamente nossa capacidade intelectual, reduzindo-nos ao nosso corpo -o corpo que dói. E quem produz a arte é o corpo que pensa, que inventa, sonha, fantasia.
O filósofo inglês Alfred North Whitehead, autor com Bertrand Russell, de um livro importante para a filosofia do século 20, intitulado "Principia Mathematica -observou que ``quando nos damos conta do funcionamento de nossas vísceras, alguma coisa vai mal. O mesmo Whitehead, desenvolvendo esse ponto de vista, já afirmara, noutra ocasião, que o que caracteriza o corpo vivo é a não percepção dos elementos que o constituem, enquanto integrantes desse organismo. Exemplifico; se minha mão toca em minha perna, percebo a mão e a perna. Mas não percebo os contatos que eventualmente ocorram entre os músculos, tendões e ossos que constituem minha mão; sei que esses músculos, ossos e tendões, existem, mas não os percebo; se sinto a existência de qualquer deles -o que em geral se manifesta pela sensação desagradável a que chamamos dor- é que ali a máquina do corpo deu defeito.
Pode ser esclarecedor compararmos, neste caso, o corpo humano com, digamos, uma aparelho de televisão. Se em determinado ponto dele, de repente, começam a ocorrer estalos e faíscas, é que algum defeito está interferindo no funcionamento normal do aparelho. Se o aparelho de TV fosse um ser vivo, certamente sentiria dores. Talvez se possa então afirmar que a dor é o sintoma do mau funcionamento do organismo vivo -o sinal indicativo de que alguma coisa vai mal naquele ponto que dói.
Ou noutro ponto, como parece ocorrer com certas dores de cabeça que são reflexo do mau funcionamento do estômago, por exemplo. Mas, qualquer que seja o caso, a dor física tem a capacidade de tornar o nosso corpo anormalmente presente em nossa consciência, até mesmo de ocupá-la a tal ponto que mal conseguimos pensar em outra coisa. Nessas condições, é impossível criar uma obra de arte. Logo, se alguma dor efetivamente provoca o surgimento da obra de arte, terá que ser a dor moral.
A relação entre a dor -o sofrimento, a infelicidade- e a arte parece geralmente admitida, embora não se saiba se essa relação existe e, no caso de que exista, de que tipo é. Uma relação causal? Uma relação sublimatória? Uma relação meramente temática?
Por outro lado, parece certo que os momentos de tranquilidade satisfeita não são estímulos habitualmente geradoras da obra de arte. As pessoas extrovertidas, que se satisfazem com atividades esportivas ou semelhantes -caracterizadas mais pela ação do que pela reflexão-, não costumam se dedicar à atividade artística. Mas não só essas; de modo geral, qualquer pessoa que se sinta vivendo um momento de felicidade e plenitude, dificilmente sentirá necessidade de produzir arte, mesmo sendo artista.
Isso não significa que esses próprios momentos de plenitude não são, eles próprios, geradores de arte. André Gide afirmou, certa vez, que ``a arte nasce quando viver não é suficiente para exprimir a vida". Ou seja, se concordarmos com Gide, a arte é feita para suprir uma carência; nos momentos plenos -quando a máquina da vida parece funcionar satisfatoriamente bem- a arte é desnecessária. Talvez assim se explique a tendência a associar-se a criação artística com o sofrimento.
Aqui podemos estabelecer um paralelo entre a dor física e a dor moral. Do mesmo modo que o organismo vivo, quando está funcionando bem, por assim dizer, ignora-se a si mesmo, as pessoas também, na sua vida cotidiana, se tudo corre bem, vivem o presente pelo presente, sem qualquer preocupação com seus problemas e muito menos com o problema fundamental da vida humana: a inevitável morte.
E, do mesmo modo que, se o estômago anda mal, o homem se dá conta de que tem estômago porque ele dói, também se algum drama lhe ocorre -a perda de um ente querido, por exemplo-, ele é subitamente chamado a refletir sobre sua própria condição humana. Essa reflexão pode conduzir à necessidade da obra de arte.
Neste paralelo que estabelecemos entre a dor física e a dor moral, fica evidente uma diferença essencial: até mesmo porque envolve questões existenciais, filosóficas, afetivas, morais, a dor moral -ao contrário da dor física, que nos reduz à condição de ``corpo"- nos coloca diante de nossos valores e de nosso destino. Enquanto a dor física tende a nos diminuir por entorpecer a reflexão, a dor moral tende a nos ampliar, por nos obrigar a ela.
Em resumo, tanto a dor física quanto a dor moral nos levam a tomar consciência da realidade. Detenhamo-nos um instante neste ponto. Se quando meu estômago está funcionando bem, não tomo conhecimento dele e só o tomo quando funciona mal, isso nos leva inevitavelmente a concluir que o normal é possuir estômago sem saber que o possui. E não se daria o mesmo, no plano da dor moral?
A normalidade não consistiria em ignorar a realidade da mesma maneira que ignoramos o nosso estômago? Acredito que, se se tratasse de uma simples opção, dificilmente alguém, saudável, preferiria viver com a certeza sempre presente de que está condenado à morte, de que o amor que vive agora não vai durar, de que dentro de alguns anos estará velho e achacado de doenças. O homem não quer sofrer. Se meu estômago dói, não posso ignorá-lo, mas farei o possível para me livrar dessa dor. Se a minha vida dói, a opção é mudar de vida ou, se não posso fazê-lo, descobrir um modo de fugir da realidade dolorosa: pelo misticismo ou pela bebida ou pela droga, etc.
A dor, portanto, além de ser um sintoma, é uma exigência do corpo -e da vida- para tomarmos consciência dos problemas e procurarmos resolvê-los. Se uma dor de cabeça pode ser eliminada com analgésico, para a dor da existência muitas vezes não existe remédio. E é diante da dor sem remédio, do problema sem solução, que surge a necessidade do poema ou da sinfonia: a arte é, de certo modo, uma solução para os problemas sem solução.
Cumpre observar, no entanto, que, se não é a dor física, tampouco é a dor moral que gera a obra de arte. A dor moral nos obriga a encarar a realidade, a redescobri-la na sua verdade, e essa redescoberta é que gera a obra. Sendo assim, devemos concluir que, não apenas a dor, mas qualquer outro fator de vida, que nos tire do equilíbrio em que nos mantemos à beira do abismo existencial, pode funcionar como espoleta do poema ou da sinfonia. Platão dizia que o conhecimento nasce do espanto. A arte também.
Um filósofo alemão, que teve grande influência sobre os artistas da segunda metade do século 19 e mesmo sobre artistas e pensadores que viveram depois. Arthur Schopenhauer, estabeleceu uma ligação estreita entre a dor, chegando a considerar a arte uma espécie de redenção do ser humano, condenado, segundo ele, desde que nasce até que morre, ao sofrimento.
Schopenhauer pinta o destino humano em cores negras. ``Na primeira mocidade -diz ele- somos colocados em face do destino que se vai abrir diante de nós, como as crianças em frente ao pano de boca de um teatro, na expectativa alegre e impaciente das coisas que vão passar-se em cena; é uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Aos olhos daquele que sabe o que realmente se vai passar, as crianças são inocentes condenados não à morte mas à vida, e que todavia ainda não conhecem o conteúdo de sua sentença."
Em seu modo de ver, a causa de todo sofrimento do ser humano é a necessidade de querer, a que está submetido. O homem sofre por querer o que não tem e, quando o consegue, sofre porque a satisfação do desejo é ilusória e efêmera. Diz Schopenhauer: ``Querer é essencialmente sofrer e, como o viver é querer, toda a existência é essencialmente dor."
Continua à pág. 5-12

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