São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Um retrato romântico do mito de Joana d'Arc

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Jules Michelet (1798-1874), um dos maiores historiadores franceses de todos os tempos, é publicado agora no Brasil numa espécie de separata que é este ``Joana d'Arc", originalmente um dos capítulos do tomo quinto, de 1841, de sua enciclopédica ``História da França".
Tão importante é o ponto de vista de Michelet sobre o mito de Joana d'Arc que mereceu mesmo destaque em livro isolado. A história da heroína francesa serviu como veículo adequado para a expressão dos ideais românticos do historiador, para a configuração do elemento pitoresco e melodramático de sua historiografia pouco rigorosa em termos de método.
O crítico Otto Maria Carpeaux diz que, no caso das atividades historiográficas de Michelet, a ressurreição integral do passado não é um resultado acessível apenas à ciência, exigindo mesmo a colaboração da poesia.
Chamado de ``o Victor Hugo da prosa", Michelet foi, ao lado de Hugo, um dos grandes representantes das utopias socialistas, do radicalismo político e social do romantismo francês. Sua obra foi pioneira em determinar a importância das massas na evolução histórica, antes medida pelo peso das personalidades.
``Michelet é um escritor de primeira ordem, um dos maiores da literatura francesa" -continua Carpeaux-, ``(...) era sobretudo um poeta sincero, apaixonado pelos seus ideais democráticos. (...) Viu os acontecimentos do passado como numa visão ou alucinação, como cenas simbólicas do grande drama da história francesa, e descreveu-as não como testemunha, mas como visionário, com muita imaginação e algo de `fancy'. (...) A História de Michelet é fenômeno coletivo, visto através de um temperamento romântico."
Por ser um medievalista -``no sentido de que a sua Idade Média é a época na qual a França estava unida em torno de ideais comuns, uma Idade Média das grandes massas populares, heróica e democrática"-, Michelet dedicou-se com paixão ao mito medieval da heroína que ergueu o espírito abatido na França.
Mas se sua representação de Joana d'Arc tem, por um lado, todos os excessos da imaginação fantasiosa dos românticos, por outro, no entanto, revela a mão atenciosa do cientista interessado em narrar a história com o máximo de precisão.
Essa contradição se apresenta nas duas faces da Joana representada por Michelet: uma é a do mito patriótico, da virgem inspirada por ordens sobrenaturais; a outra é a pobre aldeã analfabeta, jovem vítima do ``singular desacordo que existia naquela época entre as idéias e os costumes", em palavras do próprio Michelet.
Joana d'Arc (1412-1431) tinha 18 para 19 anos quando se disse inspirada por Deus, ouvindo vozes e recebendo ordens do arcanjo São Miguel e das santas Catarina e Margarida para expulsar os ingleses, que ocupavam então grande parte da França, e devolver o reinado pleno ao rei Carlos 7º.
Joana d'Arc ainda não era dita santa (a Igreja canonizou-a por ato do papa Bento 5º, em 1920) quando Michelet escreveu sobre ela. O historiador, no entanto, parece, em alguma instância, confiar no caráter sobrenatural da atuação da moça.
Primeiro porque, diz ele, ``não aprendeu a ler nem a escrever, mas soube tudo o que sua mãe sabia das coisas santas. Recebeu sua religião não como uma lição, uma cerimônia, mas na forma popular e ingênua de uma bela história de serão, como a fé simples de uma mãe... O que recebemos assim, com o sangue e o leite, é coisa viva, é a própria vida..."
Em segundo lugar, porque parece compartilhar da tese medieval de que Deus revelava às virgens coisas que ocultava aos homens. Joana era virgem. ``Era notório e perfeitamente certo que o diabo não podia fazer pacto com uma virgem", conclui.
Por outro lado, Michelet faz todo o esforço possível para analisar com clareza o lado humano do mito Joana d'Arc. As páginas de seu texto não omitem (antecipam até) os dados sobre o grande debate que envolve ainda hoje a figura impressionante dessa mulher.
Se Joana era louca ou bruxa, se era casta ou lésbica, megalomaníaca ou simples patriota fervorosa, há indícios desse questionamento por todo o texto de Michelet. Claro que, na concepção do historiador romântico, essas coisas têm nomes diferentes, ou nome nenhum.
A exaustiva análise que Michelet faz da virgindade de Joana, ou do fato de ela usar roupas de homem, é o que chamaríamos hoje um questionamento no campo da sexualidade. Joana tinha certa (ou total) aversão aos homens, mas dormia com sua melhor amiga, Haumette. Desde sua incursão nas coisas da pátria, passa a usar roupas de homem -segundo o historiador, para proteger sua virgindade dos companheiros de combate, todos homens, bandidos e bandoleiro da qualidade de Barba Azul.
Instada diversas vezes a trocar suas vestes por decentes trajes de mulher, Joana pede enfim que lhe dêem apenas uma roupa longa (como das santas), mas quando enfim a recebe, vem pelas mãos de um homem, um alfaiate, em episódio que Michelet descreve do seguinte modo:
``Quando foi aprisionada e estava sob a guarda das damas de Luxemburgo, essas boas damas rogaram-lhe que se vestisse como convinha a uma moça honesta. As inglesas, principalmente, que sempre fizeram muito alarde de castidade e pudor, deviam achar tal disfarce monstruoso e intoleravelmente indecente. A duquesa de Bedford enviou-lhe um vestido, mas por quem? por um homem, por um alfaiate (...) que pôs a mão sem cerimônia sobre ela, sua mão de alfaiate sobre a mão que conduzira a bandeira da França... e ela aplicou-lhe uma bofetada."
Michelet acaba achando que o pior crime de Joana foi este de adotar roupas de homem. ``O que retrata a época, o espírito ininteligente desses doutores, sua cega fidelidade à letra, sem consideração pelo espírito, é que nenhum ponto lhes parecia mais grave que o pecado de ter usado uma veste masculina. Eles lhe expuseram que, segundo os cânones, aqueles que mudam assim a veste de seu sexo são abomináveis perante Deus."
Para explicar o processo inquisitorial que terminou por queimar Joana viva numa fogueira pública, para explicar porque foi abandonada pelo povo e pelo rei -depois de perder várias batalhas na guerra, Joana foi entregue aos ingleses pelos borguinhões, franceses do norte, inimigos de Carlos 7º- a heroína que salvara o povo e o rei, Michelet desce fundo na ``abjeta realidade da época".
Sua comovente defesa de Joana d'Arc atribui essa injustiça histórica à tentação que a moça virgem exercia sobre as mentes dos franceses, acostumados a amores fáceis e vulgares, num universo de cobiça e concupiscência.
``Sensibilidade e sensualidade: essas duas coisas costumam caminhar juntas", diz Michelet, ``mas a sensualidade, a concupiscência, não são menos cruéis nesse caso. Que o objeto desejado recue, que a concupiscência veja-o fugir e furtar-se a suas investidas, e ei-lo que se transforma em fúria cega...".

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