São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Michelet e a invenção da Renascença

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Michelet e a Renascença não é propriamente mais um livro póstumo, inacabado, de Lucien Febvre. Sequer, aliás, foi elaborado como livro. Tratam-se das notas completas de um curso que ele ministrou no Collège de France entre dezembro de 1942 e abril de 1943.
Com certeza, o escritor perfeccionista que era Febvre teria feito, a partir desse manuscrito, um livro bem diferente, suprimindo ou acrescentando trechos, modificando a redação etc.
Mesmo assim, se o leitor não exigir do texto a armação e a arrumação características da obra de Febvre, encontrará, nesse volume, material inédito e decisivo acerca da história do conceito de Renascença; acerca de Michelet, de Stendhal e do mundo intelectual francês nas décadas de 1830-40; e também acerca do modo como o próprio Febvre definia a Renascença, o que não deixa de iluminar, ainda que indiretamente, a sua concepção de história.
Também aqui, como na maioria dos seus trabalhos, Febvre toma como ponto de partida e fio condutor uma questão concreta: como e por que Jules Michelet estabeleceu o conceito histórico -hoje tão comum e banal que sequer nos lembramos de sua criação- de Renascença? Como e por que ele transformou o que até então era um simples episódio artístico e literário da história do Ocidente (gerado em parte pela substituição da têmpera pela pintura a óleo) num conceito e numa época histórica decisivos para a compreensão da formação do mundo moderno?
Uma vez posta a questão, Febvre inicia sua investigação pelas principais fontes intelectuais que moldaram o pensamento de Michelet, ou melhor, pelos fatores responsáveis pela geração de um espírito histórico que, na primeira metade do século 19, mudou não só a história, como também a arte e a filosofia, a moral e a religião, o direito e a linguística.
Tamanha mutação se explica pela convergência de uma tríplice transformação: nos sentimentos e na maneira de ser (revolução romântica); nas idéias morais, políticas e estéticas, quando o racionalismo cede lugar a variações do idealismo alemão (revolução filosófica); na compreensão acerca do papel, agora ativo, dos povos na gênese da história (Revolução Francesa).
Quando Febvre, em seguida, expõe o método de Michelet -mostrando como a busca de unidade e a negação da especialização permitiram-lhe reconstituir (no caso, literalmente, ressuscitar) uma época histórica até então, no mínimo, incompreendida, a Renascença-, tudo nos parece familiar, pois, afinal, fora sob as mesmas coordenadas da ambição totalizante (que considera tudo relevante) e sintética (que procura recompor a vida em seu conjunto) que Febvre nos apresentara a formação intelectual de Michelet e as primeiras décadas do século 19.
Mas, para que seja possível ligar fatos outrora isolados e díspares, extraindo deles um corpo novo, a Renascença, é preciso que entre em ação um agente que seja ele próprio o catalisador e o palco da síntese, ou seja, é necessário que nasça também, com Michelet, a figura do historiador capaz desse esforço de imaginação ressuscitadora.
A ênfase de Febvre no papel da subjetividade na reconstituição histórica não se limita, porém, a uma síntese intelectual. Não se trata somente de superar a ordenação especializada dos fatos em história política, econômica, artística, religiosa etc, mas também de uma questão de sensibilidade e de vivência.
Assim, Febvre destaca longamente os estado de espírito de Michelet à época da gênese desse conceito, as desilusões pessoais, políticas, religiosas, que o levaram a abandonar a simpatia que nutria pela Idade Média e a ansiar por uma ruptura com a tradição, por uma Renascença.
Destaca também suas viagens, a trabalho, pela Itália, a vivência do choque de civilizações e mentalidades que o levou, por analogia, a explicar a origem da Renascença francesa pelo contato entre dois mundos não contemporâneos, a França gótica e medieval e a Itália moderna e renascente.
A questão, porém, não está inteiramente respondida, uma vez que suscita, quase que imediatamente, o seguinte desdobramento: Michelet criou o conceito de Renascença sozinho ou foi apenas o intérprete mais gabaritado de uma série de idéias comuns?
Aqui, Febvre separa-se de Michelet e expõe detidamente as idéias históricas de Stendhal e de Etienne Delécruze, também eles peregrinos da Itália, também eles impulsionados à reflexão histórica pelo contato com o mundo italiano, também eles carentes de tradição, também eles autores de livros sobre a Itália que geraram e cristalizaram, apesar da multiplicidade de pontos de vista históricos, numa espécie de obra coletiva, a noção de Renascença.
É verdade que a intuição histórica de Michelet nos legou, junto com o conceito de Renascença, a concepção unitária de "época histórica e mesmo a tríade, desde então, incontornável para a compreensão do mundo moderno -Renascença, Reforma, Contra-reforma.
Mas, por outro lado, salienta Febvre na conclusão, suas insuficiências, prolongadas pelos seus sucessores, nos legaram também uma visão deturpada da Idade Média e, portanto, da formação do mundo moderno. Eles não puderam ou não conseguiram ver que a ressurreição da Antiguidade, cuja exclusividade atribuíam à Renascença, foi um dos impulsos mais profundos do mundo cristão, logo, da própria Idade Média e, por conseguinte, que a novidade dessa nova ressurreição, que chamaram de Renascença, assentou-se sobretudo na presença e na emergência de novas condições materiais.

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