São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Tropeços da última flor do Lácio

HÉLIO SCHWARTSMAN
EDITOR DE OPINIÃO

Certas misturas são fatais: manga com leite, pizza à califórnia e conhecimento da língua portuguesa com intolerância. Um ortodoxo apreciador da última flor do Lácio não pode abrir um jornal sem ter uma síncope. Não pode ler as embalagens dos produtos que adquire sem ter o ímpeto de atirá-los contra o pobre balconista, que nada tem a ver com a história.
Erros de português estão por toda parte. É impossível, por exemplo, tomar uma água de coco (a fruta) sem aquele incômodo acento que, nas gramáticas, deixou de existir há decênios. Até o refrão do governo que tenta conscientizar as pessoas da importância da educação está errado. No "Acorda Brasil, tá na hora da escola, falta uma vírgula depois de "acorda, para indicar que Brasil está no caso vocativo.
Mesmo nas tão sapientes bulas de remédios, que nos ensinam palavras bonitas como "teratogênico, "farmacocinética, "hipomania, sempre se encontra algo como "nas doses correspondentes à (sic) aproximadamente 2,5 a 10 vezes a dose máxima....
O resultado é que o apreciador intransigente da língua desenvolve uma úlcera, compra um remédio para tratá-la e, ao ler a bula, além de sofrer por antecipação todos os efeitos colaterais indesejados nela descritos, acaba tendo um infarto quando se depara com aquele último e fatal atentado ao vernáculo. Não, definitivamente, não é uma atitude saudável.
Saudável é o que faz Josué Machado em seu delicioso "Manual da Falta de Estilo, uma coletânea de suas crônicas publicadas originalmente na revista "Imprensa e na Folha. Unindo a dose certa de bom senso, conhecimento e humor, Machado transforma regras de português, um assunto considerado aborrecido pela imensa maioria dos humanos, num texto divertido e de leitura agradável.
Suas alusões à política e sua ironia fina fazem com que o livro se torne interessante até mesmo para jornalistas, a categoria profissional que mais maltrata a língua, perdendo talvez apenas para os escrevinhadores de bulas de remédios. A diferença é que as bulas vêm em letras miúdas e não são lidas; jornais são. Acho.
Como sucede a todos aqueles que só pensam naquilo -a língua, ou melhor, o idioma-, Machado também acabou desenvolvendo suas idiossincrasias. Ele condena com veemência o uso da expressão "cometer suicídio. Considera-a uma má tradução do inglês "to commit suicide.
É evidente que seria ridículo tentar negar hoje que o verbo pronominal "suicidar-se exista e que seja de fato pronominal (só se conjuga acompanhado do "se, sempre). Etimologicamente, entretanto, "suicidar-se é um pleonasmo. É formado pelo pronome latino "sui (se) e pelo verbo "caedo (matar). Acrescentar-lhe o "se português soa, aos ouvidos do latinista, algo como um deselegante "matar-se a si próprio.
Se o substantivo "suicídio é castiço e tal ato é condenado pela moral e, até há pouco, também pela lei, ele combina com verbos como "cometer ou "perpetrar. Preserva a sanidade dos cada vez mais raros latinistas e não constitui maior ofensa ao vernáculo. Sem prejuízo, é claro, da forma "suicidar-se.
E, se Machado fez ouvidos de mouco ao clamor dos apaixonados pelos étimos (origem das palavras) no caso do suicídio, ele toma o partido dessa ala quando tenta, provavelmente em vão, banir o uso da expressão "meio ambiente. De fato, "ambiente vem de uma forma participial do verbo latino "ambio e significa mais ou menos "entorno. Já "meio vem do latim "medium que designa, entre muitas outras coisas, "espaço.
Falar ou escrever "meio ambiente é, etimologicamente, mais ou menos como dizer "espaço espacial. Trata-se, porém, de uma forma aparentemente já consolidada no português brasileiro contemporâneo, embora os admiradores da história das palavras possam sempre evitá-la. É um fenômeno análogo ao que ocorreu com "suicidar-se, só que mais recente.
A discussão dessas picuinhas, que interessam provavelmente apenas a mim e ao Josué, foi uma exigência dos editores do "Mais!, que me pediram 50 cm de texto. A única coisa realmente relevante que tenho a dizer sobre o "Manual da Falta de Estilo é isto: leitura extremamente esclarecedora e muito divertida para todos aqueles que, de alguma forma, usam a língua portuguesa.

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