São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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A astúcia da serpente

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A chamada ``Segunda História da Criação" inicia-se no versículo 5º do capítulo II do ``Gênese" (``Bere'shith - No começar"), tendo como intróito o 2º hemistíquio do versículo 4º desse capítulo:
No dia/de os fazer / Ele-O Nome-Deus / terra e céufogoágua" (conforme se lê em minha ``transcriação", ``Bere'shith - A Cena da Origem", Perspectiva, 1993). O primeiro hemistíquio desse versículo 4º: ``Esta a gesta do céufogoágua / e da terra / enquanto eram criados", constitui, segundo o hebraísta Robert Alter, um ``sumário formal" da ``Primeira História", aquela que apresenta, além da criação dos animais e do ser humano, o relato cosmogônico, perpassado de vestígios do mito de origem babilônico.
Já para outro especialista, Umberto Cassuto, o versículo 4º, nos seus dois hemistíquios, como um ``todo orgânico", teria a função de servir de texto conectivo entre ambas as narrativas da Criação, pertencendo, porém, à segunda delas.
O texto ``Javista", no qual se inclui o episódio do Éden, da criação de Adão do pó da terra e de Eva de sua costela, e da intervenção desagregadora da serpente, foi, não faz muito, reproposto polemicamente à consideração dos estudiosos de literatura como extraordinária obra de arte verbal, comparável às de Homero, Dante, Shakespeare, a ser resgatada da leitura meramente confessional. O responsável por essa proposta revisional é o renomado crítico e professor de Yale, Harold Bloom. Conhecido por sua sofisticação, erudição e conservadorismo (quanto ao gosto e predileções literárias), Bloom é também, na cena norte-americana, o adversário por excelência dos confortáveis marxistas acadêmicos, neo-lukacsianos, da ``Escola do Ressentimento", como ele os denomina em bloco.
Em 1990, Bloom publicou ``The Book of J", ou seja, o ``O Livro do(da) Javista" (não o ``Livro de Jó", como treslêem alguns, confundindo na pressa uma parte do ``Gênese", primeiro livro do ``Pentateuco" ou da ``Torá" hebraica, e o ``Sêfer Ha-'Iyov", de autor anônimo, composto no século 5 antes de nossa era, conforme datação de J. Bottero; ver meu ensaio ``Jó: A Dialética de Deus", com a ``transcriação" do capítulo 38 desse livro-poema, em ``Bere'shith", cit.).
Nesse seu trabalho, competentemente traduzido para o português pela ensaísta Monique Balbuena (editora Imago, 1992), Bloom sustenta a tese de que o autor do excerto ``Javista" da Bíblia Hebraica seria antes uma ``autora" -uma dama ilustrada da corte salomônica (escrevendo no reinado decadente de Roboão)- e que essa porção da ``Torá", ainda que submetida posteriormente a uma revisão unificadora que até certo ponto a teria rasurado, não obstante podia ser reconhecida como uma obra-prima, a par de poucas outras da literatura universal. (Aliás, de Auerbach e Northrop Frye a Robert Alter, sabemos que a Bíblia Hebraica é um dos cumes literários da humanidade, não apenas em sua porção ``Javista"...).
A tese da autoria feminina, avançada engenhosa e combativamente por Bloom, não é, em si mesma, suficientemente comprovável (não podendo, por outro lado, ser inteiramente descartável). Recorde-se, por exemplo, que a obra-prima da literatura japonesa clássica, o romance-poema ``Genji Monogatari" (``Histórias de Guanji"), foi escrita por uma dama da corte do período Heian Médio (falecida no ano 1014 de nossa era), Murasaki (Violeta) Shikibu, de cuja vida pouco se conhece. Nada obsta, em princípio, que se conjecture, com engenho e empenho, em torno de uma figura remotíssima de mulher e escritora, educada no áureo período salomônico (século 10 antes da era cristã), que tem por centro o legendário Rei-Sábio, a quem a tradição atribuiu, por longos séculos (ainda que equivocadamente), o ``Cântico dos Cânticos" e o ``Eclesiastes".
Roberto Alter, titular de literatura hebraica e comparada em Berkeley, e um dos mais renomados especialistas contemporâneos em literatura bíblica, refutou circunstanciadamente a hipótese de Bloom. Em ``The Quest for the Author" (Cap. 7º de ``The World of Biblical Literature", 1992), após tecer críticas cerradas ao livro do professor de Yale, Alter conclui com as seguintes palavras de ressalva: ``Há buracos vazios em sua argumentação, mas isso não significa necessariamente que devamos rejeitar seu convite para olhar os antigos escritos com olhos novos", um semi-elogio que ecoa, sem o mencionar, o lema da abordagem literária de tipo sincrônico -``Make it New"-, divisa de Ezra Pound (poeta que não está nas boas graças de Bloom e que não lhe integra o cânon ``sublime", de extração miltoniana e romântica).
Quais seriam esses ``furos" argumentativos? Desde logo, o escasso conhecimento de hebraico por parte de Bloom. Este, segundo Alter, ``possivelmente não teria condições de ler a Bíblia no original". Disso decorreria uma consequência grave: o fato de Bloom ter-se apoiado, para efeito de suas ``instituições" críticas, avaliações estéticas e desenvolvimentos exegéticos, não no original propriamente dito, mas antes na versão para o inglês do texto ``Javista", de responsabilidade de David Rosenberg. Para Alter, ``Bloom tomou uma decisão catastrófica ao atrelar seu projeto à tradução de Rosenberg", ou seja, ``existe prova abundante de que, quando Bloom fala de J, ele está, na realidade, falando da versão inglesa de Rosenberg, e a distância entre ambos é muito considerável".
Ora, segundo decorre das observações de Alter, Rosenberg (ainda que faça uma profissão de fé nesse sentido em apêndice ao ``Livro de J"), está longe de recriar a ``sintaxe flexível, predominantemente paratática" e as ``normas idiomáticas" do hebraico ``belamente compacto e cadenciado" do original. Antes, seu inglês resultaria frequentemente ``entrecortado" (``choppy") e, do ponto de vista rítmico, ``movido a solavancos" (``bumpy"), apresentando, em relação ao texto de partida, de ``castiça concisão" (``chastely concise"), um ``pendor de poetastro por clichês metafóricos". Que Bloom tenha sido capaz de ``tão extremado lapso de gosto" (e, de fato, comparando o extrato ``Javista" com Shakespeare, Bloom acabaria, efetivamente, no plano estético, equiparando o discutível estilo tradutório de Rosenberg ao deslumbrante inglês shakesperiano), isto, somado a outras falhas, leva Alter ao ceticismo quanto à hipótese da autoria feminina levantada pelo crítico de Yale.
Encara-a, ao fim e ao cabo, como o resultado, ``fragilmente documentado", de um ``fundamentalismo", não religioso, mas reivindicatório da ``personalidade autoral", por um lado, e, por outro, das virtudes de um ``intuitivismo crítico" desvelador, capaz de captar as inflexões de uma ``voz feminina" através de uma língua vicária, o inglês de Rosenberg, que não retrata o hebraico do original.
Ademais, é de considerar, segundo Richard Friedman -``scholar" citado com reverência por Bloom e referido neste ponto por Alter- ``não é possível, em realidade, distinguir do ângulo estilístico entre J e E" (ou seja, entre o ``Javista" e o ``Eloísta", este último o redator que chama Deus por ``Elohim" em outras partes do ``Humash/Pentateuco"). Isso relativiza a singularidade, tão decantada por Bloom, da linguagem da suposta Dama-Escritora, paradigma perdido do ``autor(a) forte", que a posteridade teria neutralizado sob um anonimato recoberto pela sigla ``J"...
Tanto quanto posso julgar, a tradução de Rosenberg não tem, de fato, a categoria que lhe atribui Bloom, apesar de apresentar, aqui e ali, eventuais soluções de interesse. Não se lhe pode reconhecer a qualidade da ``transgermanização", atenta à força semântica das ``palavras-guia" e à ``oralidade" (``Gesprochenheit"), de M. Buber-Franz Rosenzweig; a coerência lexical e o projeto rítmico-pausal de H. Maschonnic; nem mesmo o gosto (às vezes mau gosto) etimologizante de A. Chouraqui, que impressionou e norteou os autores de ``Traduire Freud".
Para quem se deu ao trabalho de confrontar o texto original do (ou da) ``Javista" com essa versão para o inglês (e com as traduções de Buber-Rosenzweig e Chouraqui), como eu o fiz, minuciosamente, no que respeita aos capítulos II e III do ``Bere'shith" e ao episódio da ``Torre de Babel" (idem, Cap. XI, 1-9, este o único dos mencionados também traduzido e comentado por Meschonnic), será fácil comprovar a procedência das restrições de Alter, aliás sempre embasadas em remissões ao texto hebraico.
Assim, por exemplo, no episódio babélico, Bloom, alicerçando-se na versão de Rosenberg, dá extrema importância a um suposto jogo de palavras e de sentido, atribuído a sua ``Javista", em torno do verbo ``to bind" e seus derivados.

Continua à pág. 5-5

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