São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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Globalização atropela a cultura

OLGÁRIA CHAIM FÉRES MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

``A cotação da experiência está em baixa no mercado (...), e isto numa geração que, entre 1914 e 1918, viveu uma das mais terríveis
experiências da história (...). Na época,
já se podia notar que os combatentes voltavam mudos
mais pobres em experiências comunicáveis."
W.Benjamin
Experiência (existencial) e mercado (de capitais) não se comunicam. O silêncio de homens que regressavam da guerra devia-se à perda da força significativa das palavras, da potência em transmitir saber e ensinamentos, elaborações simbólicas e interpretações do homem. Em meio à destrutividade cósmica, a língua não era mais lugar de origem e pertencimento, referência e proteção. Seres frágeis e vulneráveis encontravam na língua um amparo e uma ``pátria.
O canto próprio às línguas -suas acentuações, cadência, pronúncia- não é neutro; recusa a língua ``média". Toda língua é expressionista, constituindo um modo de conhecer e de se fazer conhecer. Para o filósofo Benjamin, é necessário preservar o que realiza o parentesco das línguas -o que torna a comunicação possível- bem como o que as faz estrangeiras. Toda a fala é, para ele, um modo provisório de procura do metron de seu estranhamento. Toda língua é a busca, pelos caminhos de suas mutações, da língua original. Encontrar uma harmonia entre elas, é roçar-lhes o sentido ``que só pode ser tocado pela brisa da língua, como o vento tangia a harpa eólia".
A língua é, também, o diagnóstico das maneiras de nascer, viver e morrer de uma determinada época. Freud, que não era linguista profissional, encontrava nos sonhos, lapsos e atos falhos relações entre o presente e o passado, entre nossa história e a história coletiva. Com o que dava a compreender os mecanismos da formação dos neologismos. Longe de constituir invenção arbitrária, a polissemia indica o necessário dos diversos sinais.
O mesmo ocorre com o nome que recebemos no nascimento: de início, aleatório em relação à pessoa que seremos, no correr da vida passa a nos pertencer, criamos e somos criados pela realidade do nome. Há uma relação das línguas faladas com a vernacular semelhante à hypodoché platônica: a língua original é receptáculo e matriz que irradia uma vitalidade comunicativa. A língua literária é a forma mais forte de conferir sentido ao desordenado; é ordenação do próprio universo mental.
Assim também o tradutor se reporta às línguas. Walter Benjamin dizia ser a tradução tarefa e missão: traduzir a Ilíada para o alemão deveria ser a arte -não de germanizar o grego, mas de helenizar o alemão. Nisso consiste o respeito pela diferença entre as línguas e a ampliação das fronteiras de nosso próprio mundo. O filósofo recomendava não se tomar as contingências de nossa língua como o essencial a manter: seria preciso, antes, submetê-la ``à moção violenta da língua estrangeira".
É próprio ao pensamento tecnocrata dispor da língua segundo ``valores extrínsecos: no caso, as oscilações do mercado e, também, o editorial. Que se considerem novas possibilidades para o livro didático brasileiro, a ser adotado nos países africanos de língua portuguesa, países política e economicamente frágeis.
Sem esquecer o expansionismo inerente ao ``mercado": o indiano, em Goa; o chinês em Macau. O que estaremos exportando? Certamente a discutível, para não dizer comprovada má qualidade das obras tanto no plano cultural quanto gramatical, livros destinados ao consumo e não à formação de um ethos, de um ``caráter", de uma disposição afetiva para entrar em relação com o outro e consigo mesmo.
Jamais cogitou-se unificar o alemão germânico e o austríaco; o inglês europeu e o norte-americano e sul-africano; o árabe do Oriente Médio e o norte-africano; o espanhol ibérico e o latino-americano. Por que a língua de Guimarães Rosa é universal? Com neologismos, anglicismos, latinismos, germanismos, tremas e sinais de vogais breves ou longas do grego e do latim, o escritor introduz o sertão em seus vocábulos.
As línguas são diferenças que comunicam diferenças. A alteridade é, nelas, possibilidade de ampliação de nossa humanidade. Ela não limita, totaliza. É a diferença que torna a comunicação possível. É num acordo sutil entre palavras pronunciadas (ditongo aberto ou fechado, trematizações, consoantes interpostas) que as línguas se respeitam e se harmonizam. O que as torna comunicáveis é sua essencialidade, aquela que permite a interlocução. ``Pequenas" mudanças padronizadoras não aproximam as línguas; procuram, ao contrário, neutralizar a semântica de seus universos. Variações próprias a cada língua são representações imaginárias.
Benjamin escrevia ``ser preciso escutar nas palavras seus apelos". Quem não souber reviver a nostalgia própria às palavras -a história de suas transformações- jamais poderá respirar o seu perfume. É preciso ouvir o que as palavras dizem e como o dizem. Toda língua é nostálgica por ser nosso passado e nossa memória. O tecnocrata é inimigo da história. Cristaliza-a num presente preguiçoso, desconhece as razões de um rompimento com as tradições, transforma a história de uma língua viva em arquivo morto. Mudanças efetivas evocam diálogo com a história, o não-esquecimento. A maiêutica das palavras -essa arte de assistir à multiplicação dos sentidos- dá-se no minimal, isto é, no essencial.
Nenhum poema, anotou Benjamin, é válido ``em função de quem o lê; nenhuma pintura, em função do espectador; nenhuma sinfonia em função do auditor (...). Podemos falar de uma vida ou de um momento inesquecíveis mesmo quando todos os tivessem esquecido". Da mesma forma, a traduzibilidade de configurações linguísticas permanece presente mesmo se não forem traduzidas, pois contêm, nas entrelinhas, sua tradução virtual.
A perda progressiva de direitos a que se denomina, hoje, progresso atinge a língua. Tranquilidade ou tranqilidade: cada qual faz sua própria pronúncia, gestando-se ``ilegalismos", privatizando-se a língua, dissolvendo autonomias linguísticas. Essa nova figura da crise -a da continuidade de uma língua- é crise da cultura. Mercado consumidor e privatização produtivista da cultura são critérios extraculturais, impróprios à avaliação das línguas.
Aqui, cálculo empresarial é atividade anticultura, é inimizade pelo pensamento, é indiferença frente à auto-suficiência das línguas. A respeito disso, Adorno escreveu nos anos 60: ``A formação cultural hoje em questão é justamente aquilo para o qual não há atribuições adequadas nem transformações teleguiadas (...). Se não temesse incorrer em sentimentalismo, diria que a formação cultural requer amor. Crise da cultura é, por certo, defeito na capacidade de amar".

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