São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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A miséria como prioridade

HERBERT DE SOUZA

O governo Fernando Henrique Cardoso completou quatro meses e, neste período, já levantou muitas expectativas e teses. Apontou várias prioridades ao mesmo tempo e não teve condições -ou mesmo não soube- concentrar-se nas mais importantes.
É um sinal de desorientação do governo que se propaga pela sociedade e dificulta a crítica. Onde centrar o questionamento? Numa democracia, no entanto, o exercício da crítica é fundamental, e o governo não pode pretender ser o princípio e o fim da verdade.
Em nome desse princípio, do lugar de articulador da Ação da Cidadania e de conselheiro do programa Comunidade Solidária, quero expressar minhas apreensões.
O Comunidade Solitária ainda ensaia seus primeiros passos com programas governamentais já instalados ou propostos no governo anterior. São programas tímidos, parciais e pobres em financiamentos. O presidente tomou posse anunciando o combate à fome e à miséria como prioridade absoluta. Esse problema nunca foi prioridade absoluta de governo nenhum, e a realidade está mostrando que também não é deste.
Para ser prioridade absoluta, o combate à miséria não pode ficar restrito ao Comunidade Solidária. Precisa se transformar num plano de governo, com participação intensa e cotidiana de todos os ministros, especialmente os que lidam diretamente com recursos, como José Serra e Pedro Malan. É deles a responsabilidade de demonstrar como a política econômica vai produzir o fim da miséria e em que prazos.
Onde está a prioridade do governo? Claramente no plano de estabilização da economia, no fortalecimento do real. O argumento é o de que a inflação faria a miséria aumentar. Esta não é, no entanto, uma relação automática. Sem inflação, a miséria também pode crescer.
O fim da inflação ajuda na redução da pobreza, mas um plano de estabilização não resolve a miséria. Tanto que ela cresce no México, na Bolívia, na Argentina e no Chile. Estabilizar não traz necessariamente como consequência a erradicação da miséria.
Em nome da estabilização, o governo quer reformar a Constituição e apresenta ao país um conjunto de propostas que geraram reações de todos os lados. São reações que vêm dos que não conhecem as propostas ou dos que não conseguem entender onde realmente o governo quer chegar com elas.
As propostas de reforma na Previdência, por exemplo, mobilizaram milhões e produziram desconfiança. Será que está claro para todo mundo o que as mudanças pretendem? A reforma na Previdência está sendo apresentada como solução para um problema de caixa: se não mudar, a Previdência vai falir.
Esta é certamente uma oportunidade que o governo está desperdiçando de apresentar a reforma da Previdência como uma forma essencial de combate à pobreza e à miséria por um programa social que atinge 14 milhões de pessoas. Um aposentado com rendimento decente estará fora do campo da indigência.
Por enquanto, a prioridade tem sido estabilizar primeiro para combater a miséria depois. O país já sabe o que é viver sem inflação, mas ainda não sabe o que é viver sem miséria e indigência.
A prioridade absoluta do governo e da sociedade deveria ser -e não é- o combate imediato e total à miséria. É um objetivo totalmente compatível com as aspirações da sociedade brasileira. A Ação da Cidadania tem dado criativas demonstrações disso, que o governo teima em não reconhecer publicamente.
Existem iniciativas bem-sucedidas de combate à miséria que podem ser reproduzidas. As ações de combate à miséria estão ao alcance da ação governamental. Medidas exemplares de resultados imediatos podem ser formuladas e implementadas.
É possível, por exemplo, implantar um programa de bolsas de estudo para que as famílias tenham condições de manter as crianças na escola. Um programa radical de incentivo à produção e de apoio à micro e pequena empresa terá consequências instantâneas na geração de empregos. A utilização de terras públicas ociosas, como já têm feito algumas estatais, é uma medida de impacto na produção de alimentos e na geração de postos de trabalho.
A contratação de obras e serviços que já façam parte do orçamento de governos estaduais e municipais e privilegiam a geração de empregos é outra iniciativa que depende apenas de decisão. E a distribuição emergencial de alimentos será sempre uma forma de atender os que estão na indigência.
Mas o Estado brasileiro sempre governou para 20% da população e ignorou os outros 80%. É do próprio presidente o reconhecimento de que o Brasil não é um país pobre, mas injusto. Enquanto a prioridade for a estabilização, continuará injusto.
Reverter a situação de miséria é necessariamente reverter a prioridade do Estado e colocar o combate à fome e à miséria no centro das ações de governo. Antes que a democracia também acabe na miséria.

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