São Paulo, domingo, 7 de maio de 1995
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A gramática dos direitos humanos

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Há dez anos o Brasil retornou ao governo civil. Há sete uma Constituição democrática foi promulgada. E, no entanto, graves violações de direitos humanos continuam a ocorrer.
Em artigo nessa página (26/4), o secretário-geral da Anistia Internacional, Pierre Sané, apresentou um balanço de sua visita ao Brasil, mostrando que as autoridades de nosso país preocupam-se com e falam a língua dos direitos humanos. Mas, em pungente depoimento, registrou o idioma da carência e da indignidade humana, que, em constraste com a fala dos governos, ouviu dos grupos mais pobres e carentes.
Apesar da democracia, continuam frequentes os grupos de extermínio nas periferias das grandes cidades, as execuções extrajudiciais de maus policiais militares, que contam com a proteção de uma Justiça especial, os assassinatos de crianças, a tortura de suspeitos nos distritos policiais e de presos.
A criminalidade violenta e o crime organizado, o narcotráfico, a lavagem de dinheiro e a corrupção não foram alvo de políticas de enfrentamento eficaz. Há um abismo entre o quadro normativo democrático e o funcionamento efetivo das agências do Estado. As instituições de controle da violência, como o Judiciário e as polícias, não sofreram reformas após a ditadura.
Se há tanta continuidade, o que mudou? A grande diferença é que, pela primeira vez na história da República, o Estado e a sociedade estão consultando a mesma gramática, permitindo que os mesmos paradigmas dos direitos humanos sejam a referência fundamental.
Até a última transição política, os governos brasileiros, mesmo democráticos, consideravam a violência contra as classes populares uma comodidade a ser dissimulada. Um dos primeiros governantes que ousou introduzir o tema do controle da violência ilegal do Estado foi, com alto risco pessoal e político, o então governador eleito do Estado de São Paulo, André Franco Montoro, ainda em plena ditadura. Mas, em geral, desde 1985, ainda que de maneira contraditória e omissa, o governo federal tem aprofundado seu compromisso com a legalidade dos direitos humanos.
Pois é obrigação dos Estados e governos garantir os direitos humanos. Isso ficou claro na Declaração de Viena, redigida em 1993 sob coordenação do embaixador brasileiro Gilberto Sabóia. Afinal, foi para forçar a transformação do Estado de perpetrador de violações em promotor do Estado de Direito que resistimos à ditadura e nos mobilizamos pela democracia.
Qualquer mudança na linguagem do poder conta. Com ou sem sinceridade, é sempre relevante. Porque permite que a Anistia Internacional e nós mesmos responsabilizemos os governantes pelas obrigações que assumiram.
O governo brasileiro é alvo de nove queixas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na OEA, apresentadas por organizações não-governamentais (três movidas pela Comissão Teotônio Vilela). São denúncias de desrespeito aos princípios dos tratados internacionais que o país ratificou. Denunciar, cobrar, é parte da sintaxe democrática.
Como consequência dessa gramática única seguida pelo Estado e pela sociedade, algo de relevante foi alterado no embate das duas linguagens -a do poder e a da sociedade. Todos os tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil por empenho dos chanceleres, após o fim do regime autoritário, e por pressão das ONGs (ainda que pesem algumas reservas a eles que precisam ser abandonadas).
O governo federal tem aprofundado uma política externa transparente de promoção dos direitos humanos. A atuação do Brasil na Comissão de Direitos Humanos passou da negação das denúncias para o reconhecimento da sua legitimidade. Nossas embaixadas deixaram de tratar as ONGs como inimigas: em Londres, o embaixador Rubens Barbosa é um interlocutor válido para a Anistia Internacional e outras entidades.
O atual governo decidiu criar um Departamento de Direitos Humanos no Itamaraty, algo que defendíamos. Novas vias de cooperação entre governo e sociedade civil, como foi preconizado pela Anistia e pelas ONGs brasileiras em Viena, estão sendo abertas.
Agora mesmo, numa longa e inédita reunião em Washington (EUA) entre o presidente da República e 11 entidades internacionais de direitos humanos e ambientalistas, essa orientação foi confirmada. Fernando Henrique reafirmou o papel fundamental das ONGs enquanto colaboradoras decisivas para a luta contra a impunidade.
Todos os presentes, ao defenderem a necessidade de aperfeiçoamento das instituições para o combate à violência e à ilegalidade, registraram os avanços que foram feitos na democracia e saudaram o aprofundamento desse curso na atual administração federal.
Talvez em nenhum momento da história republicana brasileira houve condições institucionais tão propícias para a luta contra a impunidade quanto na atual fase democrática, apesar da aterradora continuidade da violência.
O Brasil tem em sua Constituição de 1988 uma ``Carta de Direitos" que serve como um quadro de garantias para que a linguagem dos movimentos da sociedade civil possam se expressar.
Muitos governos estaduais são omissos, e agentes do Estado continuam a cometer abusos. Mas o governo federal, procuradores da República, alguns governos -como o do Estado de São Paulo-, e muitos promotores públicos, procuradores do Estado, juízes e advogados assumiram nossa causa.
A participação política ou social da maioria da população é escassa, mas já existe uma ativa e sofisticada rede de ONGs. A imprensa escrita é investigativa e ágil, a mídia eletrônica assegura espaço para a transparência e a crítica.
Seria ilusório supor que, no tempo transcorrido da transição da ditadura para o governo democrático, as violações de direitos humanos fossem debeladas num passe de mágica. Numa sociedade tão hierarquizada e desigual como a nossa, o autoritarismo sobrevive além do arbítrio do regime militar. Está nas práticas sociais e na cultura política onde o ritmo das mudanças é mais lento.
O passado nunca morre. Talvez nem seja passado, ainda. Mas a democracia e a gramática dos direitos humanos, apesar das diversas línguas faladas, oferecem as condições para apressarmos as mudanças por meio da mobilização popular. E fazermos a gramática dos direitos humanos prevalecer.

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