São Paulo, terça-feira, 9 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os guerreiros

JANIO DE FREITAS

A ordem é matar a granel. Marcello Alencar, o governador atônito, não precisava ser mais claro: ``Não vamos vacilar. Temos de nos portar como guerreiros, não como vassalos". Não se sabe de onde ele concluiu que o oposto de guerreiro é vassalo, cujas obrigações feudais incluíam exatamente os serviços guerreiros. Mas a mensagem de Alencar não foi obscurecida por suas obscuridades mais profundas. Se não fosse tão claro, por ele falariam as 14 mortes feitas ontem por sua polícia -a de um trabalhador e as de 13 marginais que, segundo testemunhas, ofereciam-se à rendição.
Como não há eleição à vista e Alencar desfruta da proteção dos meios de comunicação do Rio, o noticiário não é proporcional ao agravamento da violência. Todos os exageros do passado, no entanto, seriam insuficientes para retratar a situação em que o Rio foi mergulhado nos últimos meses. E se a concepção oficial passa a ser de guerra, e não de ação policial, só se pode esperar por violência ainda maior.
A cada marginal morto, vários lhe disputam o lugar, imediatamente. Não se precisa estar próximo de uma favela para constatar a massa incalculável de jovens sem ocupação explícita, mas com os tênis e as roupas da moda, e no rosto um ar de espreita. Estão em toda a cidade: nela não há mais onde se possa estar sem a expectativa de um momento cruel.
O Exército invadiu favelas, pôs carros de combate nas ruas, acabou desistindo. Em passado mais distante, foram criados os esquadrões da morte, que mataram inúmeros marginais, até que seus integrantes foram dados, eles próprios, como marginais. Era a igualdade dos extremos que se manifestava de forma aguda, e da qual a polícia nunca mais pôde ser curada. É ela que volta a ser adotada em sua forma aguda. A violência que não substituiu a inteligência, ao tempo dos esquadrões da morte, não a substituirá ao tempo dos batalhões da morte.
O problema não se resolverá senão pela percepção de que exige inteligência e, muito mais que pela fortuna pedida a Fernando Henrique por Marcello Alencar para compra de equipamentos policiais, por uma ação que reduza, drasticamente, o imoral desprezo dos governantes pelas concentrações da pobreza chafurdada em valas de imundície.
Quando João Paulo 2º veio ao Rio pela primeira vez, quis conhecer uma favela. O cardeal Eugênio Sales providenciou às pressas, com os governantes de então, esgoto, calçamento, iluminação, limpeza para a favela do Vidigal, na região administrativa do Leblon. Até roupa de cama providenciou. Tudo em menos de um mês. O papa não viu uma favela, viu uma falsificação. Mas o resultado não buscado foi esplêndido: aquela tornou-se a mais pacífica e a menos desumana, em todos os sentidos, das favelas cariocas. Os jovens da boa classe média do Leblon passaram a ir aos bailes do clube dos favelados.
Até que a polícia, depois de prender um certo Denis, que comandava os quadrilheiros controladores da favela, não muito depois matou os seus dois prepostos, que continuavam mantendo a ordem geral a par dos seus negócios de marginais. Desde então, a disputa pelo controle transtornou o morro, com tiroteios, blitze, intimidações. E aí está figurada toda a complexidade do problema: a prisão e morte dos controladores não fez cessar, nem sequer diminuiu, a marginalidade -tornou-a explícita, impetuosa, agressiva.
Mas o retoque para iludir os olhos de João Paulo 2º, embora só retoque, tinha produzido efeito inesperado. O melhor dos efeitos. Marcello Alencar, o ministro do Exército, as chamadas autoridades em geral, só conhecem, porém, outro caminho. O próprio cardeal acha que ``as medidas têm que ser tomadas, sejam quais forem, dentro da lei e da ordem". As da lei e da ordem não podem ser ``sejam quais forem", que é a chave da frase. As da lei e da ordem são as que nunca foram tomadas -a não ser para que o papa pensasse que elas existem no Rio de Janeiro, Brasil.

Texto Anterior: Gordon se dizia assombrado
Próximo Texto: Conta de PC em Miami deve ser investigada
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.