São Paulo, terça-feira, 9 de maio de 1995
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Funarte rima liberdade com libertinagem

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

``Não confundam liberdade com libertinagem", arengavam os milicos que nos governaram a partir de 1964. Como de hábito, eles estavam redondamente equivocados. Aos que ainda têm dúvidas a respeito, recomendo que se inscrevam no próximo curso da Funarte, ``Libertinos/Libertários", que daqui a 20 dias estará animando o auditório do Palácio da Cultura (r. da Imprensa, 16), no Rio, e o Centro Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais (av. Santos Dumont, 174), em Belo Horizonte (veja programação ao lado).
As inscrições (tel. 021/297- 6116) serão abertas no dia 15. À vista do que Adauto Novaes fez com a paixão, o olhar, a ética e outros temas, não há como duvidar de sua excelência. E muito menos de sua seriedade.
Para não falar de sua atualidade. A literatura libertina do século 18 acaba de renascer na França, em múltiplas edições que são verdadeiras jóias arqueológicas, pois muitas delas mofavam até pouco tempo atrás no ``inferno" da Biblioteca Nacional de Paris, timbradas como criações do demo, indignas de toda e qualquer estante.
Márcio Souza, ainda fresco na presidência da Funarte, perfilhou o curso sem pestanejar, ao contrário da Secretaria da Cultura de São Paulo, que se diz sem fundos para importá-lo. No entanto, com a vinda de dois mestres europeus, Raymond Trousson (da Universidade Livre de Bruxelas) e Pascal Dibie (da Sorbonne), e a inclusão de mostras paralelas, com música libertina medieval e renascentista (a cargo do Grupo Cervantes), exposições (de artes plásticas, filmes e vídeo) e a leitura de trechos de ``Filosofia na Alcova" pelo ator Paulo Betti, o evento custou à Funarte menos de U$ 50 mil.
Devasso, dissoluto, depravado, licencioso. Assim o ``Aurélio" define o libertino. Ficou faltando o principal. ``Muitos libertinos foram homens engenhosos, de rara inteligência crítica, profana e profunda, que souberam associar ao mesmo tempo vício e virtude: homens que produziram alta fantasia, livres pensadores que seguem o curso das palavras e dispensam as metáforas", salienta Novaes. Pensando, sobretudo, em Restif de la Bretonne, no marquês de Sade, em Diderot, Chordelos de Laclos, autor de ``Ligações Perigosas", e Mirabeau.
O libertino típico do século das luzes era um sujeito dotado de aguçado espírito crítico, avesso a dogmatismos e superstições, impermeável à metafísica, liberto, portanto, dos grilhões das ortodoxias religiosas e morais. Com seus préstimos se fez a Revolução Francesa. Libertinos e libertários não compartilham do mesmo étimo por acaso.
Ainda faltavam quase 250 anos para a queda da Bastilha quando Calvino inventou a palavra ``libertin". Com ela rotulou os dissidentes anabatistas, contestadores das religiões vigentes, defensores da moral natural e praticantes de uma ``escandalosa liberdade de costumes baseada na negação do pecado". As igrejas sempre arrumam um jeito de desqualificar as suas ovelhas desgarradas como criaturas satânicas, malignas e desagregadoras. A católica foi a que de mais perto vigiou e puniu as suas licenciosidades. Raramente não se vê um padre, um monge ou uma freira nas gravuras libertinas do século 18. Ora como olheiros da repressão religiosa, ora como partícipes de atos libidinosos.
Calvino morreu um século antes da aparição do ``Tratado dos Três Impostores", obra clandestina, de autoria anônima, que aos calvinistas muita irritação causou. Católicos, judeus e muçulmanos tudo fizeram para escondê-la. Também conhecida como ``O Espírito de Espinosa", defendia a tese de que Moisés, Jesus e Maomé não passavam de impostores que se valeram da credulidade e da superstição populares para exercer dominação política. O professor José R. Maia Neto vai falar sobre ela no curso.
Outro clássico anônimo, ``Teresa Filósofa", servirá de tema a uma conferência do professor Renato Janine Ribeiro. Publicado em 1748 -no mesmo ano em que Montesquieu lançou ``O Espírito das Leis" e as sacanagens soterradas em Pompéia foram descobertas-, supõe-se que tenha sido escrito pelo marquês d'Argens. Foi a mais intensa obra erótica do seu tempo, uma insólita conjugação de saber e foder. Teresa é uma jovem que, à maneira de uma heroína de Sade, se submete a um processo de iniciação sexual e gnosiológica. Enquanto transa (ou se masturba) com homens e mulheres, toma aulas de filosofia. Nunca o conhecimento serviu tanto à libertação do corpo e do desejo.
Que fim levou a libertinagem? Segundo o professor Décio Pignatari, um dos conferencistas, ``ela envelheceu e virou turismo sexual". Outro que se ocupa de sua atualização, o jornalista Eugênio Bucci, a vê diluída nas ofertas libidinosas da propaganda erotizada, transfigurada no sexo virtual e nas transas internetadas. ``Um autêntico assédio eletrônico", diz ele. Por falar em assédio sexual, corolário moderno da libertinagem, a psicóloga Maria Rita Kehl tem a respeito uma tese curiosa: sua proibição, além de produzir novas formas de hipocrisia, pode voltar a empurrar o sexo para o terreno do escândalo, do escondido, da sombra -e com isto gerar um novo imaginário erótico, cheio de sutilezas que a banalização mercantil da sexualidade destruiu.

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