São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Hammurabi e a agricultura

ANTONIO DELFIM NETTO

Desde a sua origem, o crédito sempre esteve ligado à noção de usura. Talvez a primeira regulamentação conhecida daquele instituto se encontre no famoso Código de Hammurabi, inscrito numa pedra preta há mais ou menos 4.000 anos e que pode ser vista no Museu do Louvre. Quando foi escrito, a Mesopotâmia era uma fértil região de agricultura irrigada, com uma vida econômica rica e diversificada.
De acordo com as disposições do código, todos os empréstimos deviam ser devidamente registrados num tablete de barro e reconhecido por um funcionário (há 4.000 anos os burocratas já estavam trabalhando!). A taxa máxima de juro dos empréstimos em espécie (isto é, em grãos) reembolsáveis em espécie não poderia ser superior a 33,33% ao ano. O juro nos empréstimos em metal-moeda não poderia ser superior a 20% ao ano. Mas há alguns dispositivos interessantes: 1) se o credor cobrar mais do que esse juro, ele perde o direito ao principal; 2) se houver uma inundação ou uma seca, o devedor fica dispensado de liquidar o empréstimo no mesmo ano, e 3) um empréstimo em metal-moeda pode ser liquidado com o pagamento em grãos (cevada, trigo).
A equivocada política agrícola transformou o sistema bancário (e o que é muito mais triste, o Banco do Brasil, que costumava ser os olhos e os braços do governo), num usurário com Shylock, a famosa personagem de Shakespeare de ``O Mercador de Veneza", que quer receber sua indenização na forma da própria carne do corpo do seu devedor. Não foi por outro motivo que nas mãos de Lutero o nome do banqueiro Fugger de Augsburg transformou-se no adjetivo ``fuggerei" (explorador). Em italiano o usurário é ``strozzino" (estrangulador)!
Se o Código de Hammurabi estivesse em vigor no Brasil de hoje, todos os débitos da agricultura estariam eliminados, como se vê pela tabela abaixo, que dá o juro anual em produto equivalente dos empréstimos tomados em São Paulo em setembro de 1994 para serem reembolsados em março de 1995:
Há 4.000 anos, na Mesopotâmia, o crédito agrícola já era mais bem-regulamentado do que no Brasil! É para dar razão ao velho ditado árabe, de que ``aquele que se casa com uma dívida entregará seus filhos para pagar o juro".
A agricultura foi muito sacrificada na safra 1994/95 com a taxa de câmbio sobrevalorizada, com taxa de juro absurda, com a suspensão de financiamentos do Finame, com redução de tarifas alfandegárias para a importação de produtos subsidiados em seus países de origem e financiados a prazo de 6 a 12 meses com juro internacional. É tempo de encarar com seriedade esse problema, antes que se deteriorem as expectativas de plantio da safra 1995/96, porque ela pode trazer uma surpresa desagradável.

Texto Anterior: Louvor aos Gordons
Próximo Texto: NEM TANTO AO MAR...; REFORMA LENTA; DIA DA VITÓRIA
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.