São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 1995
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Salgado, amargo engano

RICARDO SEITENFUS

Platão é meu amigo, mas eu sou ainda mais amigo da verdade"
Aristóteles, IV século a.C.

O Brasil está presente nas solenidades que comemoram os 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Paralelamente, a cidade de São Bento do Sapucaí (SP) comemora o centenário de seu ilustre filho, Plínio Salgado.
Neste mesmo espaço, há poucos dias (Folha, 3/5/95), Gerardo Mello Mourão interroga ``quem teria medo de Plínio Salgado?" e sugere ao presidente e ao ministro da Educação que instituam 1995 como ``o ano Plínio Salgado".
Plínio Salgado destacou-se, com seu pensamento e sua ação política, justamente nos anos de chumbo da década de 1930, quando se prepara a maior hecatombe vivida pela humanidade.
A participação do Brasil na Segunda Guerra provocou perdas humanas e materiais. Navios mercantes afundados por submarinos alemães e italianos, 26 mil soldados no front italiano, bases no território nacional para forças estrangeiras, nossa atuação diplomática -sob a inspirada condução de Oswaldo Aranha- mostram que o país colocou-se a serviço da causa democrática.
Mas tais decisões não foram tomadas sem traumas, dificuldades e contradições. O país encontrava-se sob o jugo do poder pessoal de Getúlio Vargas, com um ministério heterogêneo. Em seus lugares-chave, raros simpatizantes dos aliados. Predominavam defensores ou da posição contrária, ou da neutralidade, tal como o exemplo argentino.
A Constituição vigente, redigida por Francisco Campos, foi nitidamente inspirada nas experiências totalitárias italianas, portuguesas e polonesas. Portanto, a história demonstra que as escolhas brasileiras não possuem o aspecto romântico e linear que o recuo do tempo insiste em lhe atribuir como característica maior.
Não pretendo dissecar a doutrina pliniana e muito menos a integralista, o que vários autores já o fizeram. Mas quero resgatar outra pergunta: como Plínio Salgado posiciona-se, em sua atuação política, com relação às duas concepções de mundo que se digladiam?
Desde 1936, a Ação Integralista Brasileira (AIB), dirigida por Salgado, manteve relações concretas com a Itália mussoliniana. Em 37, os arquivos diplomáticos de La Farnesina comprovam que não se trata unicamente de afinidade ideológica com Roma, mas também de auxílio financeiro. A AIB chega ao ponto de solicitar 1 mil revólveres -belgas ou tchecos- para preparar o golpe que fracassará em maio de 38.
Plínio Salgado envia mensagem a Mussolini, em outubro de 37, por ocasião do aniversário da Marcha sobre Roma, para enaltecer as virtudes do fascismo na luta contra ``o capitalismo internacional, velho escravizador de povos, que agora une-se abertamente ao bolchevismo, destruidor das tradições cristãs do Ocidente".
Com o fracasso do golpe integralista, muitos dirigentes serão exilados, tais como Miguel Reale, considerado por Roma como seu mais confiável aliado na política nacional. Salgado refugia-se em Lisboa, como o próprio sr. Mello Mourão sabe, pois o encontrou, em maio de 1942, quando chega do Brasil a bordo do navio ``Bagé". Desde o início daquele ano, ressalte-se, o Brasil já havia rompido suas relações diplomáticas e comerciais com o Eixo.
Os arquivos diplomáticos do Eixo atestam que seus agentes, tais como Walter Schellenberg e Colpi, encontraram-se várias vezes com Salgado em Lisboa durante este período. O objetivo de Berlim era preparar o pós-guerra em caso de vitória do nazi-fascismo.
Salgado dispôs-se a ir além, pretendendo criar, com o auxílio do nazi-fascismo, ``um movimento de independência nacional que poderia ser a fagulha que faria toda a América do Sul insurgir-se contra o predomínio norte-americano". Para tanto, ele coloca seus adeptos nos EUA e Inglaterra à disposição do Eixo. Propõe-se a fornecer informações sobre as bases militares norte-americanas instaladas no Brasil e empreender ações, a fim de criar ``um estado de inquietação e de ameaça" às mesmas.
Salgado é um filho de seu tempo. A visão maniqueísta do embate internacional não contaminou somente a ele. D. Helder Câmara também acreditou na simplista divisão do mundo entre integralismo e comunismo. Inobstante, os dotes literários de Salgado, suas idéias nacionalistas numa prática exógena, seu cristianismo autoritário e excludente deixam marca indelével na história brasileira da primeira metade deste século.
Entretanto, a sua ação sorrateira e antibrasileira, durante o exílio lisboeta, época em que o país já estava em guerra contra aqueles que vencemos em 1945, deixa pairar no ar algumas interrogações sobre a justeza da homenagem sugerida. Muito mais aconselhável, do ponto de vista da construção do Brasil democrático, seria o governo resgatar a memória da participação brasileira na Segunda Guerra, tendo como critério não os afagos a personalidades, mas a incessante busca da verdade histórica.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 47, doutor em relações internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais de Genebra, atualmente coordena o Mestrado em Integração Latino-americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS). Autor, entre outros, de ``O Brasil de Getúlio Vargas e a Formação dos Blocos: 1930-1942" (O processo do envolvimento brasileiro na Segunda Guerra Mundial).

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