São Paulo, quarta-feira, 10 de maio de 1995
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Democracia sem democratas

OLGÁRIA CHAIN FÉRES MATOS

``O governo da Frente Popular na França, se praticado pela direita, provocaria motins" (Walter Benjamin)

Com estas palavras, Benjamin dá a seu amigo Lieb, que vive na Alemanha, o diagnóstico político das esperanças de melhoria nas condições de vida dos trabalhadores que levaram ao poder Léon Blum na França de 1936.
Esperanças decepcionadas em parte pela situação econômica da Europa, que se preparava para a guerra, o que provocou na França queda de salário, fim das férias pagas, diminuição da jornada de trabalho e outras perdas sociais.
Confundindo o possível e o necessário, a política dos atuais governantes do Brasil encontra nos números seu preferencial aliado. Política que se propõe modernizadora pensa no progresso, mas esquece suas vítimas.
Números, sabe-se, não se discutem, seja em questões previdenciárias, privatizações ou tributação. Pode-se discordar quanto a inclinações doutrinárias ou desejos. Quanto à exatidão dos cálculos, trata-se de obedecer, constituindo um gigantesco processo de intimidação.
Qualquer desconforto por parte dos cidadãos denuncia, no melhor dos casos, um derrotista que se euforiza com grandes fracassos. No pior, seres mesquinhos, confinados em seus interesses particulares, ``corporativos".
O ``amor fati" aritmético auxilia no raciocínio por média: ``X come quatro sanduíches por dia; Y nenhum. Na média, o esfomeado come dois". Este procedimento pertence à visão de mundo tecnocrata. Além de insensibilidade social, truculência ideológica e desonra do cidadão. Velhos, deficientes, necessitados são fonte do déficit público.
O pensamento tecnocrático é anti-humanista: converte direito em privilégio. Desde o ``jus naturalismo" medieval à concepção moderna, o direito definiu e consolidou uma concepção de homem pela declaração universal de seus direitos, conquistados por enormes esforços sociais, que fazem de nós seres morais, respeitados em autonomia e maioridade social. Ao privilégio, ao contrário, correspondem a política do favor, o tráfico de influências e a apropriação privada do poder.
A igualdade de condições foi o pré-requisito para o direito à diferença. Assiste-se, hoje, à sua perversão no nivelamento, por exemplo, da arrecadação previdenciária de homens e mulheres. Concede-se à mulher os mesmos direitos do homem no mercado de trabalho, retira-lhes, porém, o direito principal, o de ser mulher.
Há uma forte ``tradição" brasileira, segundo a qual o que é público é gratuito. Os defensores da educação privada violam a cidadania, convertem o direito em favor. Os despossuídos ficam a dever àquele que ``favorece" seus estudos, como se os ricos pagassem para os pobres. Além da humilhação, a violência. Na democracia, ao contrário, não dependemos de nenhuma suposta boa vontade, mas da lei. A arrecadação dos impostos deve se traduzir em retorno social: o cidadão já pagou, e caro, a escola, os hospitais, a aposentadoria.
Perversão típica de direito em privilégio: a reforma previdenciária do regime de trabalho de professores. No Brasil, professores do primeiro e segundo graus, bem como universitários, são exauridos por razões ao mesmo tempo semelhantes e diversas, além de mal-remunerados. O ``privilégio", pelo menos no caso das humanidades, é o excesso de trabalho que comporta o Regime de Dedicação Exclusiva à Docência e Pesquisa (RDIDP).
No que concerne, em particular à USP, não prevê Fundo de Garantia. Em contrapartida, há o ``privilégio" de se trabalhar durante as férias, em bancas, orientação em pós-graduação, preparação de concursos, livros, conferências, cursos etc. Um professor-pesquisador chega aos 50 anos no auge de seu stress.
A anulação do direito à aposentadoria aos 25 e 30 anos para professores, incluindo os de universidade, desconhece a efetiva dupla jornada e passa a ser conhecida como ``aposentadoria especial". Igualdade abstrata de direitos em situações desiguais é igualdade em não-direitos. O direito à aposentadoria justa e digna deveria se estender à sociedade inteira, ao contrário de retirada de quem a conquistou.
Bovarista à sua maneira, o Brasil se concebe, a exemplo da personagem de Flaubert, o contrário do que é. Por exemplo, país apto a atrair investimentos não-especulativos. Ou então, vive-se uma ``alucinação negativa". Se na alucinação presentificamos um objeto ausente, na alucinação negativa, ao contrário, na presença do objeto, alucinamos sua ausência.
Exemplo: em regime tecnocrático, perde-se mais do que direitos. Perde-se a representação do direito a ter direitos. Sociedade demótica, mas não democrática, cidadania negativa, ``Custo Brasil". Que se recorde Kant: todas as coisas que podem ser comparadas podem ser trocadas e têm um preço. As coisas que não podem ser comparadas não podem ser trocadas. Não têm preço. Têm dignidade.
Instalar uma política que não reconhece e respeita direitos inviabiliza o triunfo pacífico, infinitamente mais seguro, forte e durável do que aquele conseguido pela reordenação dos apoios de circunstância à luz mortiça dos corredores do Parlamento. Essas vitórias serão permanentemente contestadas.
Retirar direitos achata o espaço público, entendido como lugar de instituição, exercício e ampliação de direitos, estreitar o espaço público significa restringir as fronteiras do possível.
O tecnocrata é o amigo natural do ditador. Pretende remanejar as relações sociais subsumindo-as à contingência do presente, segundo cálculos entendidos como princípio explicativo soberano. A ``política do possível" é o absolutismo do caminho único.

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